Badaladas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.
Publicado
originalmente na. Semana Ilustrada,
Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.
22 de outubro de
1871.
Escapamos de boa!
Ali ao pé de nós, a vinte minutos de viagem, ali na formosa
Niterói, esteve há dias prestes a romper uma guerra terrível - uma guerra entre
a província do Rio de Janeiro e a Itália.
Dois deputados provinciais propuseram que a assembléia, em nome
da província, protestasse “contra o escândalo de que é vítima o Santo Padre” –
que esta
sendo “acometido insólita e traiçoeiramente em seus
direitos incontestáveis”, e cuja posição “é nimiamente precária, injusta,
inqualificável, vexatória e atentatória, etc.”.
Isto é declarar guerra à Itália, creio que era uma e a mesma
coisa.
Para sustentar o seu ultimato fez o Sr. padre Alves dos Santos um discurso, não longo, mas entremeado de
apartes, com que os seus colegas iam cortando-lhe impiedosamente as asas.
O melhor, porém, aquilo em que o Sr. padre Alves dos Santos me pareceu abjurar dos princípios da
nossa Igreja, foi um aparte que deu ao Sr. Mattoso Ribeiro.
Dizia este seu colega:
“— A conquista do território romano nada tem com a religião
católica, apostólica, romana, — porque, se o Papa sai de Roma, não se perderá o
catolicismo.”
Acode o Sr. Alves dos Santos:
“– Está muito enganado!”
Ó divino Cristo, que pensarás tu ao ouvir esta resposta? Dizias
uma necessidade quando afirmavas que contra a tua Igreja não prevaleceriam as portas do inferno. Estavas em
erro, meu divino Cristo. A força da tua Igreja não vem da tua doutrina; vem de
alguns quilômetros de território. O catolicismo em Roma vale tudo; se o
pusessem em Jerusalém, não valia nada. Verité em deçà, erreur au delà.
Victor Manuel deixou ainda uma parte da cidade ao Santo Padre; é
por isso que existe a Igreja. Se ele amanhã o expulsasse de lá, acabava-se o
catolicismo. Victor Manuel dava cabo da obra de Jesus; podia mais que o
inferno.
Em trocos miúdos, é a opinião do deputado fluminense.
É escusado dizer que todo o católico, e o próprio deputado se refletir no dito, deve repelir tão singular opinião.
Em todo o caso, ainda que o orador tivesse razão, não era motivo
para que a assembléia provincial rompesse as relações (que não tem) com a
Itália. O Sr. Vieira Souto acudiu a tempo, desbastando
a moção inicial, com uma emenda que nada compromete, e assim ficou encerrado o
incidente.
Perguntam-me várias pessoas se não estou disposto a dizer alguma
coisa a respeito do caso triste e digno de memória que se deu entre uma freira
da Ajuda e o nosso prelado.
Respondi que sim, e pretendia navegar nas águas do Sr. Ribeiro
Franco, quando o Jornal do Comércio de quinta-feira, em que vem a resposta de um Sr. Apostolo ao irmão da finada freira. Mudei de opinião.
O tal Apostolo, depois de algumas expressões que apostam mansidão com as do
Evangelho, explica francamente que o pedido da freira era fraqueza feminil; que
a carne, a carne, e mais a carne (ils sont très espirituels)
não devia ser atendida; que S. Excia. fez ouvidos de mercador (textual) às lamúrias encapotadas da
carne (textual) já, solene e irrevogavelmente, renunciada pela dita freira,
etc.
Depois de tão vigorosa resposta, pensava eu que o Sr. Ribeiro
Franco poria termo aos seus artigos.
O irmão da finada quer imitar os comunistas de Paris que também
morderam o nosso prelado...
Aqui para o leitor, e pergunta se estou zombando dele.
Não, caro leitor; não zombo, repito o que nos disse a referida folha:
“O nosso sábio e virtuoso bispo foi de modo insólito agredido
pelo Sr. José Ribeiro Franco, por um fato bem simples, que bem demonstra que a
impiedade desenvolve todos os dias mais força a ponto de não trepidar, como os
comunistas de Paris, em erguer o asqueroso colo para fincar dentes envenenados
na sagrada pessoa do nosso preclaro e virtuosíssimo bispo, inegavelmente a
honra e glória do episcopado brasileiro”.
O Sr. José Ribeiro Franco continua, pois, a imitar a comuna de
Paris.
No seu artigo de quinta-feira censura o nosso prelado por haver
dito que S. José era duas vezes onipotente.
Não se dá maior impiedade! Bem se vê que o Sr.Ribeiro
Franco parou nos evangelistas e nos padres da Igreja. Está abaixo do seu século; anda na aldeia e não vê as casas.
O erro do Sr. Ribeiro Franco provém de uma ilusão deplorável. S.
S. supõe que nós ainda estamos no Cristianismo, quando essa religião
vai senão vantajosamente substituída pelo Marianismo.
A demissão do Padre, do Filho e do Espírito Santo pode-se dizer
que é um fato; não está oficialmente publicado, mas é um fato. A teoria do
Marianismo é que Deus nada pode contra a vontade de Nossa Senhora, e se nada
pode, pode menos, e se pode menos é poder inferior.
A isto se prende naturalmente a idéia das duas onipotências de
S. José.
A propósito. . .
Corre em Lisboa, já, em 2ª. edição, e sei se aqui também, um livrinho com o título :
Novíssimo mês de Maria, ou mês das flores, coordenado pelo padre J. L. L.
A devoção de Maria e a consagração que se lhe fez do mês de
maio, são coisas dignas de respeito: cumpria, porém, que estas obras, já que
estamos no século XIX, se despissem de superstições que não levantam o ânimo do
povo.
Não li o livro aludido; mas uma folha de Lisboa transcreve um
pedaço que aí se lê a págs. 308,309 e 310.
Destacarei o primeiro período da transcrição para que melhor se
aprecie a doutrina:
“Nas crônicas dos padres capuchinhos (cap. 11, part. 1ª.) se conta que em Veneza havia um célebre advogado, o qual com
enganos e injustiças tinha enriquecido, e vivia em mau estado. Não tinha talvez
de bom mais que rezar todos os dias uma certa oração à Santíssima Virgem; e contudo esta pobre devoção lhe valeu para
escapar da morte eterna pela misericórdia de Maria.”
Leitor sagaz, isto é um verdadeiro achado. Trapaceia como
puderes, dá, a tua facadazinha, e fica certo de que escaparás da morte eterna
mediante uma oração a Virgem — é a receita mais barata que se conhece. . . renouvellée de Louis XI.
Vejamos agora o
resto da notícia; precisa ser lida com muita atenção e sem se perder uma linha.
Lá vai:
“. . . E
eis aqui como. Por fortuna sua, tomou este advogado amizade com o padre
fr. Matheus de Basso, e tanto lhe pediu que viesse um
dia jantar a sua casa, que finalmente lhe fez a vontade. Chegando a casa, lhe disse o advogado: Ora,
padre, eu quero-lhe fazer ver uma coisa que nunca terá visto. Eu tenho uma
macaca admirável, a qual me serve como um criado, lava os copos, põe a mesa, abre-me a porta. – Veja (lhe respondeu o padre) não seja essa macaca
mais alguma coisa: faça-me a vir aqui.
“Chamou ele a macaca, tornou-a a chamar, procurou-a por toda a
parte, e a macaca não aparecia; finalmente foram achar debaixo do leito,
escondida em um vaso da casa ; mas a macaca dali não
queria sair. Então disse o religioso: Vamos nós buscá-la. E chegando juntamente
com o advogado, onde estava a macaca, lhe disse o religioso: Besta infernal,
sai para fora, e da parte de Deus te mando, que declares quem és. Respondeu a
macaca que era o Demônio e que estava esperando que aquele pecador deixasse de
rezar algum dia aquela acostumada oração à Mãe de Deus porque a primeira vez
que deixasse, tinha ordem de Deus para afogar, e
levá-lo para o inferno. Com esta resposta o pobre advogado se pôs logo de joelhos pedindo ao religioso que o socorresse, o qual o
animou e mandou ao demônio que se ausenta-se daquela casa sem fazer dano a coisa alguma. - Só te dou licença (lhe disse o
religioso) que, em sinal de te teres ausentando, rompas uma parede destas
casas. – Apenas lhe disse isto, se viu, depois de se ouvir um grande estrondo,
feita na parede uma abertura, a qual, ainda que muitas vezes intentaram
tapar com pedra, quis Deus que por muito tempo perseverasse; até que por conselho do religioso se pôs naquela abertura, uma
pedra, com a figura de um anjo. O advogado se converteu; e esperamos que
dali por diante continuaria na mudança da vida até a hora da
morte.”
Não explica o autor do livrinho, nem a crônica dos capuchos, nem
o jornal a que aludi, por que motivo foi Deus buscar para seu instrumento um
demônio, podendo servir-se de um anjo, que era muito mais natural. Também não
compreendo muito a razão por que Deus não consentiu que se tapasse o buraco da
parede, e só depois de muito tempo deixou de fazer oposição a essa obra
necessária.
São verdadeiros mistérios em que nunca poderá meter o dente o
Dr. Semana.
26 DE MAIO DE 1872.
Hélas! Pour faire ma chronique
Véridique,
Je n’ai pas dans mon vieux gousset
Un sujet.
O vous, poètes, dont la plume
Ne s’enrhume,
Dont la muse fertile sait
Comme on fait
Des pages longues et guindées,
Parsemées,
De figures et de propos
Gras et gros,
Portez-moi sur vos grandes ailes
Immortelles,
Dans les pays où vous rêvez
Et régnez.
Car, tout ce qui n'est pas la prose,
Moi, je n'ose
Traiter dans ce quartier banal
Du journal.
Je sais bien qu'en faisant ma course
A
Je verrais des sujets nombreux
Et fameux.
Par exemple, ce grand bagage
Du village
Isabel, dont on voit si haut
L'agio.
On ne nous pule que de ventes
Excellentes,
Des changements, des gros paris,
Des gâchis.
Puis, la guerre de sa rivale
Qui cabale
Pour defaire tous ses beaux plans
Importants.
Quand je lis — avec des besicles
Les articles
(Dont on remplit nos grands joumaux)
Vrais ou faux,
Je cherche, en bonne conscience,
L'évidence ;
Je les trouve de deux cotés
Maltraités.
Mais, lecteur, suis-je un imbecile
Indocile,
Pour fourrer mon nez de voyou
Dans ce trou ?
On parle aussi d'une demande
Très-friande,
Quelque chose de grand qui part,
Tôt ou tard.
Ce sont, je crois (ceci est grave,
Je m'en lave,
Les mains on m'a conte ce bruit
Aujourd'hui);
Ce sont, je crois, ces deux collines
Si voisines ;
Cele qui porte un vieux couvent
Écroulant ;
L'autre où la clique jésuite,
Parasite,
Eut, dans le temps, son grand bureau
Riche et haut.
On me dit qu'on veut les abattre;
Un théâtre,
Des beaux squares et des palais,
Puis, des quais,
Des rues, un Hotel de Ville,
Quatre mille
Maisons nouvelles, on verra
Tout cela.
Mais une idée sérieuse
Et couteuse
Ce n'est pas ce que nous aimons.
Donc, passons.
Passons aussi cette querelle
Qu'on appelle
Des francs-maçons, des vieux abbés
Très-roués.
Je crains d’éveiller la colère
De l’austère
Monseigneur de l’épiscopat, Lacerda.
Il est fin ; et s'il me décoche
De sa poche
Un anathème et lourd et fort,
Je suis mort.
Mort, hélas ! et mon corps sans âme,
Vil, infâme,
Ne pourra posséder un trou
Au Cajú.
Allons, donc ! Mais voici un membre
De l’ex-chambre,
Qui me demande un aperçu
De mon cru.
—Monsieur, lui dis-je, cette guerre
C'est l'affaire
De ceux qui sont au baccarat
De l’Etat.
C'est un jeu noble et difficile,
Très fertile,
En coups imprévus et changeants
Dénouments
Pour le jouer it faut qu'on aie
De monnaie;
Moi, je suis un pauvre rêveur
Sans valeur.
Puis, j'adore toujours ma mie
Utopie,
Une vierge qui perd son temps
Dans vos camps.
Car vous êtes des gens pratiques,
Méthodiques,
Réglés, froids, raisonneurs, discrets
Et corrects.
Or l’utopie est cette chose
Qui ne pose,
Cette chose que j’aime à voir,
Quand, le soir,
Je mets mon âme à la fenêtre
Pour voir naître
La lune, dont l’aimable cour
Fuit le jour.
Et, monsieur, si le ministère
Eu la guerre
Pour ne pas conteter à tous,
Voulez vous
Trouver un point d’accord facile
Dans la ville ?
Voir ministres et deputés
Très liés ?
Qu’ils aillent voir cette charmante
Fleur naissante,
Qu’on appelle Lucinde, et puis
Je vous dis
Que si ce beau talent n’efface
Toute trace
De haine, c’est qu’ils sont alors
Presque morts.
Mais, quoi! J’ai fait une chronique
Politique?
Parbleu ! ce fut sans le savoir.
Donc, bonsoir.
Dr. Semana.
28 DE JULHO DE 1872.
Houve um jantar político no Pará. Comeu-se como é de uso nos
jantares, e politicou-se, como é de praxe nos
jantares políticos.
O leitor já está a adivinhar que, não sendo esta folha política,
alguma coisa alegre me chama atenção para os brindes publicados no Jornal do Comércio de quarta-feira.
Adivinhou.
Um dos oradores encetou o seu brinde fazendo uma homenagem ao
tipo do bom cidadão. Em seguida, disse que percebera desde o começo do jantar
que todas as pessoas presentes rendiam homenagem a um bom cidadão.
Mas qual é o sintoma que dá a conhecer a homenagem prestada a um
bom cidadão? Que pergunta! É o silêncio.
Disse o orador:
“O profundo silêncio que reinou durante a mastigação deste
banquete, tão suntuoso quanto concorrido de convivas respeitáveis, despertou no
meu coração este sentimento: Todos que estão aqui rendem homenagem a um bom
cidadão.”
Eu peço humildemente ao leitor que acredite no assombro que me
produziu a leitura do trecho citado. Ainda na véspera tinha eu jantado com
alguns amigos; durante a sopa e a primeira entrada ninguém abriu o bico. Mal
sabia eu que rendíamos homenagem a um bom cidadão.
Até aqui tinha eu uma boa suspeita de que o silêncio que se
observa no começo dos jantares era uma simples homenagem ao estômago.
Atrevamo-nos: uma homenagem à besta.
Geralmente, quando os grandes jantares começam, está o estômago
a dar horas. Daí vem, pensava eu, a mudez com que os convidados se lançam aos
primeiros pratos.
Vê o leitor que eu fazia uma triste idéia da espécie humana.
O autor do brinde foi buscar uma causa mais elevada; levantou o
estômago à altura de uma virtude social; fez uma aliança entre a gratidão
pública e a couve-flor. Confraternizou, enfim, para usar os seus próprios
termos, a homenagem e a mastigação.
E não pára aí.
Era o silêncio a única homenagem devida a um bom cidadão?
De certo.
Porque:
“Segundo a sentença dos Árabes, o silêncio é de ouro; e só o
silêncio, digno de tão numerosa e ilustre concorrência, devia ser a primeira
saudação ao distinto cavalheiro a quem é ofertado este banquete, credor de todo
respeito.”
Isto e uma cacetada na cabeça dos muitos oradores que
precedentemente brindaram o dito cavalheiro, era tudo
um.
Para mitigar o efeito do golpe não se demorou o orador em
borrifar um cumprimento, para o qual peço agora toda a atenção dos leitores:
”O entusiasmo delicado e discreto, que agora unissonamente aplaudimos, é a cor azul que veio firmar e fazer sobressair
mais a eloqüência do silêncio de ouro.”
Meditemos.
Aquela cor azul é um achado feliz.
Um entusiasmo que é a cor azul de um silêncio de ouro, merece toda a atenção dos estilistas. Eu que o não sou,
nem pretendo ser, não deixo de ver no entusiasmo — cor azul — um grande recurso
para os prosadores.
Na poesia sabem todos a vantagem que há
muitas vezes em poder empregar uma palavra curta em lugar de uma palavra longa.
Por que razão não se dará o mesmo na prosa.
Entusiasmo e uma palavra de légua e meia; às vezes cai bem,
outras vezes fica mal, não concentra, dilui o período.
Mas não acontece o mesmo com azul. Azul é breve e eufônico. Indico,
portanto, aos escritores esta substituição facílima.
Dirá o jornal:
“Fundou-se ontem a Associação para a pesca do marisco. Estavam
presentes cerca de 45 membros. O azul produzido pelo
discurso do iniciador da idéia é indescritível.”
Outro escreverá:
“O governo achará sempre frouxo o espírito público enquanto não
entrar na via das reformas radicais. Açula-se o povo com grandes idéias, não
com rebocos e mãos de cal.”
Enfim, um terceiro:
”O nosso amigo X chegou no dia 5 do passado a Nioac. O povo ardente, jubiloso, azulado, correu em massa a
recebê-lo.”
Outra vantagem que nos traz este azul.
O entusiasmo tem graus. Há entusiasmo e entusiasmo. Um chega ao
delírio, enquanto o outro não passa de animação.Qual
será a maneira de
os indicar com a simples palavra usada
exclusivamente até hoje?
Já não é assim com o azul.
Quero eu dizer, por exemplo, que um ator excitou entusiasmo
febril na platéia. Exprimo-me assim:
”No ato 3.º, na ocasião em que o marquês tira o punhal para
ameaçar o conde, esteve o ator X verdadeiramente sublime.O
público no seu azul-ferrete, atirou para a cena os chapéus.”
Suponhamos que falo de um ator medíocre:
“O ator N faz esforços para progredir, e alguma coisa vai alcançando.
Nunca será igual ao ator C, mas não há dúvida que sabe despertar na platéia um certo azul-claro, já honroso para ele.”
Quem não diria com graça, falando de um orador sagrado:
“O padre Z é a verdadeira glória do púlpito. O sermão pregado
ontem na Cruz excitou no auditório um azul, que por uma verdadeira
coincidência, era azul-celeste.”
Vi há dias anunciada uma casa para alugar. Dizia o anúncio que
era uma casa nobre.
Cogitei largo tempo.
— Casa nobre, dizia eu com os meus botões, é sinônimo de família
nobre; mas uma família nobre não se aluga. E demais casa, indicando família,
não designa só uma aglomeração de membros vivos, mas uma
geração, e isso ainda menos se podia alugar.
Evidentemente o anúncio aludia a um prédio.
Indaguei se o prédio estava aliado com os Ossunas,
os Montmorency ou os Northumberland;
soube apenas que estava aliado com a cal e a pedra de que fora feito.
Donde vinha, pois, a nobreza do prédio?
Não me constava que seus avós tivessem
ido à Terra Santa. Seus avós foram uns laboriosos
pedreiros, que só talvez agora estejam na terra. . . da eternidade.
Não rezavam as crônicas nenhum façanha
daquele prédio. As mais esmerilhadas genealogias não acharam a mínima gota do
sangue dos barões normandos nas suas veias. O prédio datava de 1835, ano que só
uma excessiva boa vontade poderá encravar na idade-média.
Supondo eu, depois de muita meditação, que o anúncio quis
indicar a condição e o aspecto da casa, tomo a liberdade de oferecer aos
anunciantes uma série de vocábulos que poderão evitar o calembour.
Pode dizer-se:
Suntuosa,
Bela,
Elegante,
Magnífica,
Soberba.
E outros termos que não escrevo por falta de espaço.
Sur ce, lecteur, que Dieu vous aie dans sa sainte
garde.
Dr. Semana.
1.º DE SETEMBRO DE
1872.
Agora prepara-se tudo para a segunda
eleição, e não sei porque este sistema parece-me uma cópia das corridas de
cavalos.
Correm primeiramente todos os cavalos; a última corrida é a dos
vencedores das primeiras.
Há, como no Jóquei Clube, um prêmio, que não é relógio, nem
bolsa, mas uma cadeira na câmara.
Na segunda corrida já as coisas vão ser mais sossegadas; a
cidade voltou aos seus eixos e o capanga a seus moutons . . até daqui a quatro anos,
porque o capanga é imortal.
Ide,
anjos velozes, a uma gente arrancada e despedaçada, — clamava o profeta
Isaías, e querem alguns que se referisse à América.
Referia-se evidentemente ao Brasil.
Aquela gente arrancada e despedaçada, o que é senão este povo em tempos eleitorais, arrancando de suas casas pelo
subdelegado e despedaçado na igreja pelos capangas?
Se me objetarem que Isaías escrevia antes das nossas eleições,
responderei que este profeta, podia adivinhar o subdelegado, sem grandes
milagres.
O que o terrível hebreu não adivinhou é que vamos changer tout cela por
efeito de uma folha de papel.
Daqui em diante todas as corridas serão como esta próxima de 18
de setembro; haverá o perigo de cair do cavalo abaixo, como nas festas do
Jóquei Clube, mas ao menos não se encontrará no chão uma navalha de capoeira.
Quem não cai do cavalo, — aludo ao Pégaso — é o poeta das Nuvens da América, o Sr. Martins Guimarães, cuja lira tem para
mim uma particularidade altamente apreciável: não canta assuntos rasteiros.
O Sr. Martins Guimarães é antes de tudo poeta filósofo.
Nefandas instituições, sacrílegas, potentes
Sabiamente num poder equilibrado;
Que o tempo levou em suas rotações,
À luz benéfica dos astros derrotados.
Mas, apesar da “luz benéfica dos astros derrotados”, ele bem sabe
o poder dessas
Tremendas legiões de nefandas éras,
Os povos na ignorância aferrolhando,
Entre os claustros contendores da aristocracia,
E entre altura do seu poder de mando!...
Nem ignora também que
Presa o mundo de suas tecidas redes,
Morria asfixiado no fanatismo;
Infiltrado dentre úmidas paredes
Do claustro saído com maquiavelismo.
Tudo isto era verdade; o quadro é verdadeiro, pintado com as
suas cores próprias. O despotismo e o fanatismo reinavam assim; porém...
Porém, caiu a árvore do despotismo,
Nefando da ciência dentre nós;
Jaz sumido através dos séculos,
Proscrito dentre as eras dos avós.
Não podiam medrar os troncos rugosos,
Das carcomidas instituições vergadas
Que as nações traziam presas,
Às cadeiras da ciência subjugadas.
Nem eram só os troncos rugosos que não
podiam medrar; a hipocrisia também não podia medrar:
Não podia medrar a hipocrisia,
E preciso era acabar as crenças dos
povos;
Engolfando nos prejuízos das idéias,
Até estes nossos brilhantes séculos novos.
Mas se isto é assim, dirá algum crítico mais superficial, se
tudo acabou, e se estamos nos séculos brilhantes, que mais quer o poeta?
Vem cá, meu crítico atabalhoado; o poeta quer que se torne
impossível a volta das eras dos avós. Reconhece que
este século é outro, mas não desconhece a possibilidade de voltarmos ao
passado.
Que faz ele então?
Pinta-nos primeiramente o que fomos; depois indica-nos o que
devemos ser. Esta segunda parte esta toda resumida nas duas quadras com que
fecha a obra:
Preciso é educar o povo e instruí-lo,
Longe da crença supersticiosa dos conventos;
Despindo a velha igreja de suas galas,
Enfeitá-la d'outros modernos paramentos.
E apresentá-la em sua pureza de verdade,
Qual noiva trajando novas galas;
Do ouropel da falsidade despojá-la. .
.
Apresentando-a com seu brilho nas salas.
Como viu o leitor, não é o Sr. Martins Guimarães um poeta de
luares e nevoeiros; não voa de noite, apegado aos raios das estrelas.
Seus assuntos são humanitários e filosóficos. Assim tem lido até
hoje; assim o será, creio eu, até morrer.
Dr. Semana.
22 DE SETEMBRO DE
1872.
O Jornal do Comércio publicou há dias uma interessante notícia, que talvez escapasse à atenção do
leitor.
Noticiou o Jornal que
o Mikado (soberano espiritual do Japão) promulgara
uma nova religião, formada do resumo e extrato de várias seitas do país.
Deve ser um singular povo, o japonês. Receber uma religião pelo Diário Oficial, como quem recebe uma nova
tarifa da alfândega, é levar o culto da administração muito mais longe do que
um povo do nosso conhecimento.
Deita-se um homem acreditando que a gula é um pecado mortal e
que as boas obras são necessárias à salvação.
No dia seguinte, entre o café e o charuto, noticia-lhe o Boletim
das Leis que a gula passa a ser um pecado meramente venial, em certos casos uma
ação indiferente, em alguns — raríssimos — um feito virtuoso, e que, a respeito
das boas obras, são elas tão necessárias à salvação como duas apólices a um
defunto, tudo com a rubrica de Sua Majestade.
Bem vejo que a religião assim constituída é essencialmente
progressiva, e não haveria razão para que não entrasse no programa dos partidos constitucionais se o Japão os houvesse no
sentido em que os tem a civilização do ocidente.
Os liberais, por exemplo, prometeriam, ao lado da reforma do
correio, a supressão de uma doutrina relativa às potências da alma.
Os conservadores, entretanto, não só proclamariam a excelência
do correio (falo do Japão) como a necessidade de conservar e até desenvolver a
doutrina das potências da alma.
Determinou esse homem no testamento que o seu corpo fosse
pesado, e que o valor do seu peso em cera fosse dado a certa ordem a que ele
pertencia.
É difícil perscrutar a razão de semelhante minuciosidade.
A intenção foi de certo boa, e se devemos respeitar a intenção dos
vivos, muito mais devemos respeitar a intenção dos mortos.
Nem por isso é menos embaraçosa a situação em que ficamos.
Se acode ao peso na salvação o peso do corpo, o reino do céu fica
fechado aos magros.
Quem for gordo tem certeza de não ir ao purgatório, pelo menos
de não ir por muito tempo. Não acontece o mesmo ao magro; o magro mal poderá
dar de si com que purgar dois ou três pecados.
E pecados tanto os comete o magro como o gordo. Quero crer até
que o magro é mais pecador.
Há na gordura certa pachorra, certa preguiça, que até de pecar
afasta a criatura. O gordo bufa, vegeta, joga o solo e faz muitas outras coisas
inocentes, que o magro não faz ou faz raramente.
Portanto, leitor, se queres que te
pesem o cadáver, engorda primeiro, faz-te arroba, faz-te tonelada, e irás ao
céu.
Ao céu irá provavelmente a nova câmara municipal se mandar
corrigir a ortografia do nome da rua do Passeio,
esquina da rua das Marrecas.
Rua do Passeio e o que está, ali
escrito.
Não se usa.
20 DE OUTUBRO DE
1872.
A notícia dada por um jornal paraense de que um candidato se envenenara
ao saber do resultado de alguns colégios eleitorais, tem-me dado que pensar até
hoje.
O mesmo acontece ao meu moleque.
— Nhonhô, dizia-me ontem este
interessante companheiro de doze anos, ser deputado é
então uma coisa muito superfina. Ninguém se mata porque não tirou a sorte ou
porque perdeu o primeiro ato do Ali-Babá.
— Assim é, respondi eu, conquanto uma eleição seja mais ou menos
uma loteria. Poucos prêmios e muitos bilhetes brancos.
Nem será difícil achar semelhança entre uma eleição e uma
mágica; avultam em ambas as visualidades e tramóias. Até há música na eleição:
variações sobre motivos dos queixos. Há também fogos de. . . bengala.
Em todo caso, querido moleque meu, custa-me a engolir a notícia,
que me cheira a carapetão. Ser deputado é bom, direi até excelente; mas, com
seiscentos fósforos!não é motivo para entrar na
eternidade!
...... O que? Se eu nego o suicídio político? Não, moleque, eu não nego o suicídio
político. Eu tenho notícia da morte de Catão.
Todavia, três colégios eleitorais não fazem uma Pharsalia, nem a
república expirou em Serpa.
Eu compreendia o suicídio político (ainda que anacrônico), se a
eleição do candidato estivesse ligada a sorte da liberdade e da nação.
Bem, direi eu, aquilo já não se usa; ninguém se mata hoje por
essas duas moças; mas em suma o candidato era um romano transviado no século
XIX. Viu que depois da expressão das três urnas a constituição era simplesmente o nome de uma praça no
Rio de Janeiro e uma fórmula de terminar decretos.
. . . Pátria, ao menos,
Juntos morremos!. . .
E expirava com a pátria, e eu não tinha nada que dizer nem
duvidar.
Mas duvido e duvido muito. A folha do Pará tem obrigação de
verificar a notícia e informar os seus leitores, em cujo número estou.
Na cidade de Porto Alegre há grandes queixas contra as
badaladas... Descansem; falo das badaladas dos sinos.
Há abusos, dizem as folhas, nos toques dos sinos por ocasião de
cerimônias fúnebres.
Que fez então o governador do bispado?
Ordenou imediatamente que cessasse o abuso, transcrevendo vários
artigos da Constituição sinodal.
Até aqui tudo vai bem.
Notei, entretanto, na Constituição sinodal uma coisa, que naturalmente tem explicação, mas que eu não compreendo.
Diz-se aí que por um homem haverá três badaladas, por uma mulher
duas, e por uma criança uma, ou seja macho ou fêmea.
Ora, por que motivo os filhos de Adão terão direito a mais uma
badalada do que as filhas de Eva?
Um defunto é um defunto.
Não há necessidade, penso eu, de indicar aos fregueses da
paróquia o sexo do cristão que cessou de viver, porque o padre-nosso é um para
todos, e se as três badaladas querem dizer que os fiéis devem rezar mais alguma
coisa, quando se trata de um homem, há nisto uma tal parcialidade masculina, que eu não posso deixar de a denunciar ao sexo oposto,
como dizia um deputado provincial.
Repito, há alguma razão que eu não compreendo, e por isso
limito-me a exprimir a dúvida.
Para alguns leitores fluminenses há de parecer curioso que ainda
exista o uso dos toques fúnebres no Rio Grande.
Isto me faz lembrar que também o tivemos aqui, e que se acabou,
naturalmente por pedido dos fiéis, o que inspirou algumas belas linhas ao
folhetinista do Jornal do Comércio em
1854.
Não o tenho à mão; mas lembra-me que ele lastimava que se houvesse posto termo ao uso dos toques
fúnebres e pedia a vinda de algum Chateaubriand que nos reescrevesse o que o
outro havia dito da poesia religiosa dos sinos.
Não é preciso dizer que o Chateaubriand não veio.
Em compensação veio o Zuavo da
liberdade.
Uma correspondência do Apóstolo critica um redator do Pelicano por
afirmar que Galileu dissera: e pur si muove.
Quer o correspondente que devesse dizer: e pur si muovere.
Isto espanta-me !
Conversavam X e Z a propósito da festa da Penha. Z perguntou
donde vinha o uso da romaria.
O interrogado ia justamente perguntar a mesma coisa, mas não
hesitou em responder:
— É um uso romano. A austera república tinha esses dias de
festa, semelhantes às férias latinas, e era então que todo o povo dava largas ao prazer. Pode-se dizer que nessas ocasiões Roma ria.
DEFINIÇÕES
Calça de meia: eufemismo da perna.
Luar: — rio francês que se pode ver em toda a parte.
Bossas: — protuberâncias no crânio, onde nunca se demoram os
ratoneiros, porque as passam. Verdade é que tem medo de passá-las sozinhos;
passam com — C — cedilhado.
Beijo: — principio fim.
Carraspana: — forma popular do good spirit.
Olhos: — batedores do coração.
Dois proprietários:
— Não há como as salas pequenas com seus tetos baixos e
naturalmente pequenos. Eu não posso olhar para um teto grande e alto.
— Eu sou justamente o contrário; para mim, um teto deve ser um
arquiteto.
No Jornal do Comércio de quarta-feira dá G. F. a Ti o seguinte aviso:
“Ontem te passei uma carta dentro da grade: desejo saber se a
recebeste.”
Esperei ansioso o Jornal de quinta-feira para ver a resposta de Ti e ficar tranqüilo a respeito da sorte
de G. F.
Céus! Nem uma linha.
Em compensação, se não achei a resposta que esperava, achei
estas poucas linhas merecedoras de atenção: é uma despedida.
N.
Não te posso mais escrever, apanhei agora este meio para te
dizer que decididamente temos que nos separar para sempre, esquece o meu
juramento, não desejo dar desgosto a minha mãe, quando eu tenha idade e tu saúde e emprego honesto, então veremos. M.
Peço desculpa à menina M.
S. Excia. parece-me
extremamente fácil em despedir o namorado.
Em primeiro lugar participa aos leitores do Jornal que ele é doente e tem um emprego desonesto. Que emprego
será?!
Isto é o menos:
O mais é isto:
A menina M jurou ao seu N amá-lo eternamente como essas coisas
se juram.
Devo crer que falava com toda a sinceridade do coração.
Mas sua mãe opõe-se ao casamento; o caso é grave; ela é sua mãe;
viu naturalmente que o emprego do namorado é desonesto e que este de mais a
mais não tem saúde.
Que faz a menina M?
Diz ao namorado: “esqueça o meu juramento.”
E dadas tais circunstâncias,
“Então veremos!”
Pedir-lhe que esqueça o juramento é já muito; mas o “então veremos” permita-me S. Excia. que lhe diga, e que lhe diga a francesa: c'est raide.
Equivale a dizer:
“Se daqui até lá eu não tiver outro namorado, e se você já estiver curado e honestamente empregado,
então pode ser que a plausibilidade de uma esperança vaga e toda conjectural
nos reúna outra vez.”
Queira perdoar se me engano.
Acabava de escrever estas linhas quando me caiu à mão o Jornal do Comércio de ontem.
N aceita a despedida; declara, porém, que não se esquecerá dela
nem do juramento.
Com razão; vê-se que ama. Poderia acrescentar que a primeira a
não esquecer o juramento devia ser ela.
Em todo o caso desejo que sejam felizes, que volte a saúde ao namorado, que nela não se apague a lembrança
dele, e que, vencida a repugnância da mãe, ambos se casem e vivam muitos anos.
3 DE NOVEMBRO DE
1872.
Em que cidade estamos?
A câmara municipal diz-me, afirma-me, convence-me de que estamos
no Rio de Janeiro. Os polemistas políticos, entretanto, só me falam de Roma.
Roma para aqui, Roma para ali. O Jornal do Comércio só é nosso em pouca coisa; quase tudo é discutir
a cidade eterna, não a moderna, mais a outra.
Qui nous delivrera des Grecs et des Rornains?
O caso é que eu já não estou certo se sou um badaladeiro fluminense ou simplesmente o flautista Ambrosius.
Tanto me romanizaram que eu penso vestir a toga quando envergo a casaca !
Há dias mandei uma carta ao livreiro Garnier,
via Appia. O correio não hesitou; foi levá-la a
Niterói.
E a cadeia velha? Não há nada que se pareça menos com o
Capitólio; entretanto, quando agora ali passo, parece-me sempre que estou a ver
a sombra dos gansos.
— Quando vai para baias? Perguntei eu a um amigo.
— Serei eu cavalo?
— Perdão; pergunto quando vai para Petrópolis.
Não me admirará, pois, se o leitor também andar atarantado com
estas transformações. A. culpa não é minha nem dele, é da política.
Trata-se de saber, em primeiro lugar, se isto é Roma; em segundo
lugar, se Roma foi uma nação imitável.
Dividem-se as opiniões; uns dizem que não, outros dizem que sim;
alguns não dizem sim nem não; outros dizem sim e não; não falta quem diga
sim-não, à maneira homem-mulher.
E não se me dará de apostar dez mil sestércios em como uma parte dos leitores é desta última categoria.
Efetivamente em alguma coisa havemos de parecer-nos com os
romanos, quando mais não seja, na língua,
... na qual, quando imagina,
com pouca corrupção crê que é latina.
Ao mesmo tempo em alguma coisa há de haver diferença entre eles
e nós.
Pela minha parte, afirmo que estive ontem com Lucullo.
Esse apreciador de bons manjares conversou comigo mais de uma
hora. Éramos três e uma moça. A moça tinha ao ombro um
pombinho ainda mal empenado, desses a que chamamos borrachos.
— Oh!Coitadinho! disse eu.
Lucullo juntou os dedos da mão direita, levou-os assim à boca, estalou
um beijo e exclamou:
— Isto com ervilhas! ...
Mas nem Lucullo nem os escritores
romanistas dão assunto cabal para a crônica.
. . . . . . . .
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . .
. . . .
E a propósito de loterias.
Aqui mesmo, há anos, tive ocasião de notar que algumas
irmandades embaçavam a lei, vendendo um bilhete singular. Não diziam que em tal
data o portador do bilhete teria de ser inscrito como irmão, e desde já lhe ficava marcado a jóia de tanto.
Vêem os leitores que há duas coisas aqui repreensíveis.
A primeira é embaçar a lei.
A segunda é ... como direi? ... é pregar uma peta, o que, se é mau num homem do mundo, deve ser péssimo em pessoas que ocupam os
lazeres no serviço divino.
Mas provavelmente o que eu então disse mereceu o mesmo sorriso
que há de agora assomar aos lábios do leitor, mau sintoma, porque o desprezo da
lei não é romano nem revela saúde.
Não é romano, mas revela alguma saúde o contrato teatral que o
presidente da Bahia acaba de celebrar com uma empresa.
Um dos artigos estabelece, entre as obrigações da empresa, esta:
“8.º — Auxiliar quanto lhe seja possível o Conservatório
Dramático para a fundação de uma escola que eduque e instrua as pessoas de
ambos os sexos que se quiserem dedicar à arte dramática,
prestando-se ele, empresário, e seus artistas a ensinar gratuitamente
durante este contrato qualquer matéria para que o mesmo Conservatório
julgue-os, e dar outrossim, até dois espetáculos em
favor da dita escola, quando criada.”
Desta maneira temos a Bahia com uma escola dramática meio fundada, enquanto
a capital do Império está ainda num doce desejo, numa vaga esperança.
A escola, não só tem a vantagem de educar os atores, mas também
a de atrair vocações. Escola não temos; vocações novas
creio que não aparecem; não as há pelo menos dignas de futuro.
Estamos, portanto condenados a ver desaparecer o cenário atual,
sem outro que o substitua convenientemente.
Venha o remédio; empreguem-se os recursos da medicina.
Mas o leitor está achando isto muito grave, e pergunta-me
naturalmente, ao ler a palavra medicina, se eu conheço a sua etimologia.
Por que não?
A etimologia de medicina é, como
acontece com outras palavras, uma lenda.
Conta-se que, no tempo do rei Numa, o corpo médico era composto unicamente de coveiros, regidos por um coveiro-mor,
chamado Cinna, avô, dizem, da tragédia de Corneille.
Adoecia um romano (eterno romano!) iam os coveiros a casa do doente medir-lhe o corpo para abrir a sepultura.
— Mediste, Caio? Perguntava o chefe.
— Medi, Cina,
respondia o coveiro oficial.
Daí, etc.
Agora o que não é lenda, mas coisa muito real, talvez realista,
é este aviso de um N a uma N:
“N...
“Não é possível nos dias que dias que marquei segunda-feira, por
caso de força maior; no dia que tiver lugar que te disse, de novo te comunicarei por este meio. Estarás de
saúde? Sempre teu até a ...”
“P.S. — Lembranças. — N.”
Até à morte, queria ele dizer, mas
parece que não quis comprometer o futuro.
Não sei se sabem que estamos com a perspectiva de ouvir sinos
por música.
Vejo no Jornal do Comércio que uma pessoa, recentemente chegada, se oferece para dar-nos este
melhoramento.
Realmente, com as tendências musicais que temos, não é mal ouvir
sinos por música. Mas que música será? Sacra ou profana? José Maurício ou
Carlos Gomes?
Não sei se faria bom efeito o Addio del passato executado nos sinos de S. José; mas estou
convencido de que os dobres das dez horas da noite, com que ainda nos
matraqueiam a cabeça, podiam ser substituídos pelo Bonne Nuit, da Grã-duquesa ou o Bonsoir,
Mr. Pantalon.
Em todo caso venha o melhoramento.
Dr. Semana.
29 DE DEZEMBRO DE
1872.
Enfim, está, pois pelas costas este ano de 72, que não foi, como aquele de que falava o Garrett, “inútil como um
cônego.”
Não foi.
Quando mais não desse, deu as nossas eleições, com
acompanhamento de tiro, como as do Ceará, ou simplesmente de rolo, como as da
Corte.
Nada me alegra mais do que este exercício da soberania
nacional... no papel;é verdade, no papel, apesar de
não saber ler a soberania nacional.
Deus traga a reforma. Se não der tudo (e é difícil que dê metade) estamos
esperando que dê alguma coisa. Façam os legisladores
uma obra que não seja o mesmo peixe com outro molho. Não é do molho que nos
queixamos, mas do peixe, e sobretudo das espinhas.
E se algum legislador me der a honra de ler estas linhas, e
torcer o nariz, como quem estranha que eu meta nestes
assuntos a minha colher queimada, peço a palavra para
responder com esta razão decisiva:
A minha cozinheira Celestina é apenas cozinheira, aliás, perita,
e, todavia.. .
E, todavia atreveu-se há dias a explicar a trovoada ao meu
moleque. Verdade seja que o fez nestes termos:
— A trovoada são os astros quentes que se encontram com os
outros frios.
Nem é só dada a estes estudos. Tem seus laivos de poesia entre a
carne e a batata. No meio das preocupações culinárias brota-lhe não raro a flor
da inspiração.
Houve ultimamente belas noites de luar. Uma,
sobretudo esteve maravilhosa. Que admira que a dita cozinheira se extasiasse ante esse espetáculo a um tempo delicioso e solene?
— Que noite! (exclamou ela). As ondas estão tão quietas! tão pequenas !Parecem passarinhos. Que artista seria capaz
de fazer assim.. . uma peça
de chita ?
Ora, se a cozinheira Celestina podia assim explicar a trovoada e
comentar a natureza, entendi que alguma coisa podia ela dizer igualmente da
política, e firme nestes princípios (frase parlamentar), perguntei-lhe que
pensava de uma câmara.
Direi a resposta da interessante senhora,
não sem pedir aos leitores que lhe não torçam o nariz, em primeiro lugar porque
nariz torcido fica muito feio, e depois porque da cozinha pode nascer uma boa
idéia, ex fumo dare lucem.
— A cambra é como o outro que diz a cozinha. A diferença a que
eu perparo a janta e os deputados preparam as leises. Meu amo às vez não gosta
de uma ou outra comida, porque não saiu bem feita; as leises o mesmo. A diferença é que meu amo ralha comigo, e a cambra é que ralha com meu amo. E se meu amo, que me paga, não apreciar o meu
cozinhado, faz-me sair de casa; não faz o mesmo com as leises;
se meu amo não as achar boas, se estiverem ensossas,
ou tiverem sal de mais, ou saírem cruas, meu amo há de tragá-las, muito
caladinho...
Aqui tive pena da ignorância da pobre velha e desci da augusta
indiferença com que a ouvia, dizendo-lhe:
— Sim, mas tenho o voto nas eleições...
Celestina pediu-me respeitosamente licença para rir. Admiti essa
liberdade ela gargalhou uns dois ou três minutos e continuou:
— A eleição a como se meu amo, enfadado da minha janta, fosse
pedir ao padeiro da esquina que influísse no caixeiro da
venda para me dar uma repreensão.
Observei a Celestina que a sublimidade do meu espírito não podia
compreender uma parábola tão rasteira.
Ao que ela respondeu pondo as mãos nas ilhargas:
— Que faz meu amo na eleição? Vota num homem porque tem o nome
comprido, e esse vota n'outro porque tem o pescoço curto. Ora, meu amo, que tem
as costas largas, fica como se lido tivesse vot...
A chegada do meu amigo Bento interrompeu esta
conversa culinário-política.
Não é pessoa de cerimônia o meu amigo Bento; veio visitar-me; e
companheiro de longos anos.
Antes de me despedir dele, contarei ao leitor um trocadilho que
ele fez sem querer, só porque emprega erroneamente uma locução.
Achou-se há dias na polícia e ouviu falar de uma mulher que deu
uma facada num homem. Facadas (pecuniariamente falando) levá-las qualquer
homem; mas aquela não foi no sentido metafórico, senão no natural.
Todavia (e aqui se patenteia o coração do meu amigo Bento) ouviu
falar que a mulher recorrera àquele expediente eleitoral porque o dito homem,
desprezando o seu amor, andava cortejando uma viuvinha.
Bento quis a todo transe contemplar essa vítima do amor. O
delegado de polícia mandou-a buscar. A vítima subiu ao gabinete.
— A senhora é que é a ré? Perguntou o meu amigo Bento com ar
compungido.
— Sim, senhor.
— Tenho
do de si!
Livre da Celestina e do Bento, fui examinar os jornais de S. Paulo, que nesse instante chegaram do Correio.
Rompo cuidadosamente o selo, que estava limpo e me podia servir
noutra ocasião (. . . , que toma o nome de economia),
abro uma folha, e que hei de ver, leitor ?
Um artigo em prosa e verso do nosso conhecido poeta e literato
Martins Guimarães.
Li-o de um trago.
Quanto a falar dele há de ser no ano novo.
Não se guardam vinhos novos em odres velhos. Há escritos que
requerem anos novos; sim, leitor, anos novos, muito novos, anos em flor.
Dr. Semana.
2 DE MARÇO DE 1873.
Ia começar estas badaladas com algumas reflexões acerca da Batalha
de Aquidaban, cujo aniversário foi ontem, quando
recebi da Eternidade uma carta importante, assinada por um nome ainda mais
importante do que ela: uma carta de Montesquieu.
A carta vinha acompanhada de um bilhete, que dizia assim:
“Dr. Semana. — Dê-me
um cantinho de seu jornal e insira nele a carta junta, favor de que lhe será
grato o seu constante leitor. — Montesquieu.”
Não hesitei um momento; mandei inserir a carta que o leitor verá
com olhar de respeito e veneração; ei-la:
MONTESQUIEU AO SENADOR JOBIM
Eternidade, sem data.
Exmo. Sr. — Acabo de ler o discurso que
V. Excia. Proferiu há dias no senado brasileiro, e
conversando com os meus amigos, patrícios e co-imortais Voltaire e Rousseau,
fomos de opinião que é um discurso digno de ser lido, meditado e comentado.
Verdade é que o nosso Voltaire — sempre brincalhão e sarcástico
— ao passo que lhe teceu grandes louvores, fez um reparozinho de má língua. O
exemplo foi contagioso, e o nosso Rousseau fez outro, o que me obrigou também a
fazer um terceiro, sem que todos três valham um cominho.
Que quer Exmo.sr.? Em alguma coisa se
há de ocupar a eternidade. Há lá nesse mundo quem se afadigue em matar o tempo.
Oh! Se soubessem o que é matar a eternidade! O tempo, Sr. Senador, não é preciso matá-lo; ele morre por si mesmo. Não se lembrará V. Excia. Daquele verso do nosso Racine, creio eu:
Le moment ou je parle est déjà loin de moi.
Pois aí tem a imagem do tempo. Que necessidade há, pois, de
matar um sujeito que nasce caduco e vive a morrer? A eternidade é outra coisa;
é a presença constante e impassível de uma coisa que nunca mais acaba e isto é
o que se deve entreter com palestras, leituras e reflexões.
Líamos, pois, o discurso de V. Excia., e refletíamos a respeito das suas várias doutrinas,
quando o nosso Voltaire, entrando no ponto em que V. Excia. fala das relações entre os climas e os governos,
exclamou:
— Cite o autor!
E dizendo isto piscou o olho a mim e ao João Jacques, dando a entender
que eu, primeiro, e ele depois trataríamos da teoria expendida anonimamente por
V. Excia.
O João Jacques riu-se a bandeiras despregadas. Eu, porém, tomei
defesa de V. Excia. como me
pediam a verdade e a justiça.
— O senador Jobim, disse eu, pode estar obrigado a não citar o
autor; pode ser que fosse tirar a idéia da algibeira de Aristóteles, e que
Aristóteles lhe recomendasse o mais profundo silêncio. Aquele grego é um bom
homem; socorre a muita gente nas suas precisões; e eu mesmo (não é por me
gabar) obedeço ao evangelho, não sabendo muita vez a minha esquerda o que a
minha direita distribui.
Voltaire — le petit Arouet,
como lhe chamamos aqui — ia abrindo a boca para falar, mas eu fiz-lhe um sinal
e continuei assim:
— Demais, a teoria dos climas na mão do Sr. Jobim apresentou-se
com roupagens novas. A idéia de que a imaginação é incompatível com a eleição
direta é absolutamente nova debaixo do sol. A afirmação de que “nos países do
norte não há governo que se anime a praticar nenhum atentado contra a razão e a
justiça”, transtorna algumas idéias recebidas na história. Mas que é tudo isso
senão o cunho da originalidade do orador?
Os dois filósofos calaram-se, vencidos pela minha demonstração.
Mas não foi longo o silêncio. Rousseau, que lia para si o resumo do discurso,
bateu com a mão no joelho e exclamou:
— Cite o autor! Cá está mais uma:
“. . . Os
homens bons assustam-se, e antes querem um leão que os devore, que um milhão de
ratinhos que os roam!”
— Isto é meu!acudiu Voltaire, dando
pulo.
E depois de ler:
— S. Excia. honra-me muito fazendo suas
as minhas palavras, mas era justo citar o meu nome, e bem assim transcrever-me
fielmente. O que eu disse foi: —“J’aimerai
mieux vivre sous la patte d’un lion, que d’être continuellement exposé aux
dents d’un millier de rats.” Foi
isto o que eu disse; e pode ser que no Brasil, quem não cita exatamente as
palavras de outro, esteja dispensando de lhe citar o nome. Em todo caso não
tira isso o mérito do discurso. . .
Aqui, Exmo. sr. meti-me eu também a censor, mais por brincar que por outra coisa, e sobretudo
levado pelo mau exemplo dos dois filósofos. Lia o discurso e dei com isto: “ Essa outra invenção, também imensamente ridícula, — o rei
reina e não governa. É um trocadilho insuportável, e que foi inventado na
França pelo Sr. de Narbonne...”
— Agora citou o Sr. Jobim, disse eu, mas creio que citou
erradamente. O aforismo é do Sr. Duvergier de Hauranne, se não estou enganado . . .
— Seja como for, não se pode negar o mérito do discurso.
— Não se pode, repetimos nós!
E aqui tem V. Excia. fielmente contada a nossa conversação a respeito do discurso
de V. Excia. Sinto havê-lo lido em resumo, mas pelo
resumo se admira a íntegra.
Nós aqui, Exmo.sr., apreciamos e lemos
tudo o que se diz nas câmaras brasileiras. Lá de longe em longe levamos uma
estopada; mas se esse mundo é de compensações, não menos o é esta eternidade em
que vivemos, e onde me acho ao seu dispor, como quem é
De V. Excia.
Atento venerador e criado muito obrigado,
MONTESQUIEU.
Ando há dias a perguntar a toda a gente se é certo que no teatro
de Pedro II apareceu um dominó (imitação de outro que, a serem verídicos os
jornais, apareceu este ano em Paris) com uma inscrição singular nas costas.
Ninguém me sabe responder. Seria peta ou só encontro as pessoas
que o não viram?
Dizem-me que era um dominó azul com fitas
amarelas; nas costas trazia um letreiro assim:
P
A
Mais de um quis decifrar o enigma e nada. Afinal um bom velho, Champolion do
Carnaval, deu com a chave do mistério, e leu: Allons souper (A long sous p).
— É, respondi, dando-lhe o braço.
— Há na rua Uruguaiana um botequim
francês com uma tabuleta em que se lê:
CAFÉ
DE
ALSACE
ET
LORAINE.
Com este cotilhão termino o meu sarau.
Até domingo.
Dr. Semana
1º. DE JUNHO DE
1873.
Hoje a minha primeira palavra é de agradecimento. Agradeço ao Sr. deputado Araripe o haver perfilhado a reflexão que fiz
acerca do nome da nova província, e proposto na câmara
outro nome menos sujeito a confusões.
Não sei se passará a emenda; mas ao menos se algum dia ouvirmos
na câmara um destes rasgos de eloqüência:
— Senhores com orgulho o digo: um
franciscano não receia comparações.
Se algum dia um presidente da nova província, em caso de guerra,
chamar os seus povos com este melodioso verso:
“Franciscanos, surgi! eia! sus!”
Se algum dia um tradutor francês, levado pelo equívoco do nome,
exclamar espantado: “C’est à ne pas y croire! Le Brésil compte encore quatre-vingt-dix-neuf-mille
franciscains. Combien faut-il des couvents pour tous ces gens-là? ”
Se tudo isto acontecer, e mais alguma coisa, nem o Sr. deputado Araripe nem eu temos culpa ambos demos aviso do
mal.
Espero que o leitor nada me peça acerca do tumulto do Recife,
que provavelmente condena, sobretudo se é maçom. Se a
vitória da maçonaria estava longe de ser segura, creio que agora é ainda mais
duvidosa.
Demais, o pau como pau é sólido, ou pode ser sólido; como argumento,
é fraco.
O soco não é um silogismo perfeito; o
cascudo é uma demonstração profundamente medíocre.
Bem sei que em certos casos a gente perde as estribeiras.
Felizes os pachorrentos que nunca se abalaram por nenhuma coisa neste mundo.
Mas, em suma, a razão devia dominar os fiéis de Pernambuco; eles deviam esperar
até o fim.
E já, que, sem querer, dei opinião acerca dos amotinados, quero
ser justo dizendo o que penso do Sr. bispo
naquela ocasião.
S. Excia. fugiu para Olinda. Pois perdeu uma ocasião única de comentar brilhantemente o seu
zelo, que era ficar no lugar do perigo, cair defendendo as prerrogativas do
cargo, confessar a fé, mostrar-se ainda mais digno do nome de cristão.
O fugir é vulgar, é ordinário, é nimiamente terrestre, é João
Antonio, é qualquer coisa, é o leitor, é este seu criado.
Que iam fazer os amotinados a Soledade?
Iam desforrar-se de uma decisão espiritual do prelado. Era ocasião única de
mostrar a sinceridade do zelo e a tranqüilidade da fé. Por isso, do mesmo modo
que estranho o movimento, estranho a fuga; e deixo este ponto para apresentar
aos leitores o Sr. Carvalho.
O Sr. Carvalho é poeta, e poeta religioso. Até aqui tudo vai
bem. Não direi que seja tão grande como o padre Caldas; não é, mas por causa do
gênero. O Sr. Carvalho cultiva um gênero mais seu que de ninguém.
Acho-me aqui diante de uma saudação a Pio IX, cuja primeira
estrofe acaba assim:
Pensai, maçons; tremei, ímpios!
Tremei, malditos ateus!
Toda poesia revela que os sentimentos de piedade do poeta são
sinceros, mas que as leis poéticas da obra são. . . um tanto especiais. Esta estrofe, por exemplo, é galante:
Salve! constância divina
Circunscrita ao Vaticano!
Vítima santa imolada
Ao ímpio furor humano!
Salve, Pontífice excelso,
Prodígio?. . .divino arcano!. . .
O principal é o fim; a chave é de ouro. Estou que o Santo Padre
não aceita a idéia do poeta. Sabe o leitor católico, que Jesus Cristo perdoou
aos judeus que o crucificaram, exemplo de misericórdia e mansidão, que o poeta
duvida se pode ser dado por Pio IX.
Para melhor entender a coisa, transcrevo a estrofe:
E perdoa, se é
possível,
Aos vis, aos novos judeus,
Que em ti não reconhecem
Um enviado dos céus!
Se é possível!
Estou convencido de que o Papa não aceita o condicional. Reclama
naturalmente contra os invasores dos seus Estados; mas perdoar-lhes, quem
poderá duvidar disso?
Os versos do Sr. Carvalho levam-me a pensar na mentira que todos
os dias anda nos nossos lábios.
Nós dizemos: perdoa-nos as nossas dívidas, assim como perdoamos
os nossos devedores. Peta! Ninguém perdoa aos seus devedores. O meu alfaiate
não me perdoa um fio de pano; o sapateiro não me perdoa um tacão de bota.
Ninguém perdoa nada.
Será das dívidas morais, as ofensas? Isso é dívida que não prescreve. Um credor
ainda perdoa. . . quando o devedor lhe não paga ou
morre sem herança. Mas o sujeito a quem chamei tolo, a moça que me ouviu dizer
que era vaidosa, esses rezam o seu padre-nosso, mas
não me cumprimentam.
Nós temos todos assim uma humildade de
liturgia, uma singeleza de vocábulo. É por isso que eu entro em dúvida se ainda
há cristãos neste mundo. Penso que, se os há, estão escondidos, ou pelo menos
andam incógnitos.
Agora, vamos fechar isto com a chave de ouro do costume.
Conhece o leitor o Sr. Pedreira Braga?
É um poeta, um poeta nestes dias de prosa. Tem escrito versos mui apreciados,
entre outros uns em louvor das bibliotecas, obra de
rara energia e harmonia.
Seus versos não são esses versos chatos, incolores, amarelos com
que nos andam a amolecer os ouvidos alguns aspirantes ao petrarquismo.
Pelo contrário, são fortes e duros como o bronze,
vastos como a amplidão, revelando a cada instante uma novidade de idéia, uma
originalidade de vocábulo, o que tudo prova a altura do seu talento e o grande
futuro da sua inspiração.
Aqui tenho diante de mim três estrofes, três pérolas, três
diamantes da melhor água. A um poeta
morto é o título; e vale a pena morrer para inspirar tão gentis
pensamentos. O Sr. Pedreira Braga não é certamente o
nosso Victor Hugo, mas sente-se que aspira a alar-se às alturas do poeta das Contemplações.
Quem já compôs entre nós estrofe
semelhante a esta?
Poeta: eras eleito! Com a essência de um
arcanjo
Em ti Deus misturara o espírito de um Vagre:
Respira, pois, que a glória é a mesma: é
sempre o anjo
Que a cada Cristo oferta um cálice de
vinagre.
Vinagre é um vocábulo pouco suscetível de rimar em poesia
elevada; o Sr. Braga, porém, o fez com admirável tento. Foi buscar Vagre, rima natural, adequada ao assunto, séria e perfeita.
2.a estrofe:
Chegaste ... E de momento medindo a longa estrada...
Lançaste após a idéia a caça da, verdade :
Mas, se cedo caíste . . . Da morte na jornada
Bateste numa porta... abriu-se
a Eternidade.
Aqui se pode dizer que, indo o poeta na jornada da morte, e
batendo numa porta, era difícil que se lhe abrisse outra que não fosse a eternidade. Mas essa razão, excelente na prosa, não vale
nada na poesia.
3.a estrofe:
E Deus em tua campa afunda um horizonte!
E é sobre campas tais que o seu esplendor
vela!
Se além, como um cometa esfera-se uma fronte,
Do caos sai uma esponja e apaga a enorme
estrela.
Esta última estrofe, melhor direi estes dois últimos versos, não os recusaria Victor Hugo. O
próprio Milton, o próprio Dante, apesar de autores de
grandes imagens, deixariam de invejar esta.
Vê-se daqui: a fronte esfera-se; é um
cometa. Mas há lá no caos uma esponja, a terrível esponja do infinito; essa
esponja sai, cai sobre a estrela, que a enorme, e apaga-se. Tudo isto é rápido,
como a idéia que exprime.
Poetas juvenis, imitai versos destes. Deixai essa poesia desmaiada, essa poesia de soro de leite;
sede fortes, altivos, grandes, desafiai as esponjas do caos. Não há esponjas do
caos quando se escreve um nome nas Tábuas do Infinito, com a Penna enorme do
Querer. Subir é a aspiração suprema da ave Mocidade; o Gênio é a Asa multicor
da inspiração ; nada vale Nada, por que Tudo é tudo.
Dr. Semana.
CAPÍTULOS DOS
CHAPÉUS
2 DE
FEVEREIRO DE 1873.
Hipocrate dit . . . que nous nous couvrions
tous deux.
Geronte
Hipocrate dit cela?
Sganarelle
Oui.
Geronte
Dans son chapitre. . . dês chapeaux.
Molière: Le médecin malgré lui.
Act.
II, sc. II.
Até sábado passado, às 11 horas menos cinco minutos, o chapéu
era uma criatura ilibada. Não constava na política um só crime do chapéu. O
júri não via comparecer o chapéu à barra do seu tribunal. As rebeliões faziam-se
muitas vezes com o concurso das bengalas, mas sem intervenção do chapéu. O
chapéu era austero; pode-se dizer que era o Sócrates do vestuário.
O que ele fazia era obedecer a Hipócrates, segundo Sganarello; cobria o homem. Não tinha outro ofício. Cortejava
os conhecidos; ia na mão, quando o mortal, seu dono,
entrava na igreja ; pendia quietamente à porta das fábricas.
Sua neutralidade na política era tal que os homens viravam a
casaca, mas não consta nunca que mudassem o chapéu. Ele servia a todos com a
mesma solicitude. Era desdém ou servilismo? Não sei; mas a verdade é que era
assim.
Mas chegou o dia de sábado 25, caiu a noite, tocou o sino das dez, os relógios marcaram 15, 30, 55 minutos, momento
fatal, em que o chapéu se afundou no abismo de todas as iniqüidades.
Foi o caso.
Os espectadores do Fênix gostam da
atriz Jesuína, no que lhes acho razão, porque nada perdeu do talento de
outrora.
Houve uma ocasião em que o entusiasmo subiu de ponto: foi às 10
horas e 55 minutos. Trovejavam as palmas e os bravos, e então (ó assombro!) dez
ou doze chapéus caíram aos pés da atriz.
Dizer o pasmo, a indignação, a cólera muda que se desenhou em
todos os semblantes seria coisa digna da pena de um Tácito ou da lira de um
Homero — à escolha. Uns olharam para o teto, outros para o chão, outros para os
outros, e todos pareciam pedir uma reparação à moral ultrajada, um castigo a
insurreição do chapéu.
Se não quando, quatro soldados correm até a
porta da caixa, e os dez ou doze delinqüentes (aqui sou obrigado a referir-me a
informações) são conduzidos ao xadrez, onde tiveram tempo de refletir nas
desvantagens de ir meter o nariz — quero dizer, a aba —onde não eram chamados.
Ora, eu apelo para todas as almas bem nascidas, e intimo-lhes
que me respondam se esta correção do chapéu não equivale à passagem do Granico ou, quando menos, à invenção do molliscorium.
Na antiguidade houve igual situação. Dracon (donde fizemos draconiano) apresentava ao povo de Atenas umas leis novas, e
quando menos esperava recebeu na cara todos os chapéus do congresso popular. Um
espírito esclarecido, como eu imagino que e o meu leitor, liga naturalmente o
ato de Atenas com o do Rio de Janeiro. Não digo que haja du Dracon dans la Jesuine;
mas o povo fluminense é muita vez consoante do ateniense, e pode amanhã
acontecer a um legislador o que hoje acontece a uma simples atriz.
Portanto,
V’la ce qu'c'est !
C'est bien fait !
Fallait pas qu'y aille
! (bis).
Simples observações aos pios franciscanos.
O governo pediu aos franciscanos que recebessem no seu convento
alguns enfermos; e os franciscanos perguntaram-lhe a que lhe soube o almoço, resposta
tão concisa quão incisiva, e que eu quisera ver gravada em
letras de bronze como exemplo a futuros governos e estímulo a vindouros
franciscanos.
Não posso afiançar se a resposta foi literalmente aquela; mas,
se não foram as palavras, foi o sentido, visto que o
efeito da resposta não passou de deixar os franciscanos naquela doce e
deliciosa paz d'alma e de corpo, em que vão, arrastando este pesado exílio do
século.
Há que diga que esta recusa dos franciscanos não prova amor do
próximo nem de Deus. É verdade; mas não há só esses dois amores debaixo do sol.
Há outra coisa, quase tão sublime como Deus, e muito mais simpática que o
próximo: é a pele. Os franciscanos amam a pele e fazem bem.
Meia dúzia de doentes no seu convento
podiam dar-lhes o reino do céu, mas podiam também
tirar-lhes o deste mundo, e na opinião dos franciscanos, se o reino do céu é
bom, o morro de Santo Antonio não é mau, e sem de todo renunciar a ir gozar lá
em cima, desejam ainda por algum tempo engordar cá embaixo.
A conclusão, portanto, é que os franciscanos trancaram a porta à
febre amarela, e que a pele de suas paternidades continua a esticar, sem
embargo da opinião que o governo, o povo e este seu criado possamos fazer
deles.
Eu, às vezes, quando não tenho que fazer, entro a cogitar no que
fazem os frades. É positivo que não gastam todo o tempo a rezar; também não me
parece verossímil que passam todo o tempo a ler ou dormir. Um Mont'Alverne teria muito em que
ocupar o tempo; mas os monges daquela casta não vêm aos cardumes; são raros.
Quando investigo este assunto, lembro-me se passam as horas do
dia a fazer charadas ou a passear em cavalinhos de pau. Outras vezes imagino
que jogam cabra-cega. Já uma vez acreditei que faziam calemburgos.
E não digo isto por censura; porque se cá fora a vida não chega
a netos, não é crível que chegue a netos no claustro. Alguma coisa é preciso
fazer para matar o tempo.
S. Paulo, que fabricava barracas de campanha, andava pregando o
evangelho, e ao mesmo tempo trabalhando no seu ofício. Tinha um ofício. O
ofício do frade é ser frade, coisa hoje equivalente a uma farta aposentadoria.
Nem S. Paulo trabalhou para outra coisa, senão para avolumar o cachaço do
frade, arredondar-lhe a barriga, florescer-lhe as rosas do rosto. Não trabalhou
para que ele morresse de febre amarela.
Logo, fizeram muito bem os pios franciscanos.
A cozinheira Celestina
Agora que cada médico apresenta o seu remédio contra a
febre amarela, não é fora de propósito mencionar um que a cozinheira Celestina
descobriu.
O qual foi exposto do seguinte modo:
— Para a febre amarela não há como refrescos e limonadas.
— Limonadas e refrescos? Disse o moleque.
— Sim, senhor; não há como isso. Em
Mal sabe o leitor o que eu admiro em toda a história da parede
que outro dia fizeram os condutores e cocheiros dos bonds.
O que mais me admirou foi (declaração da parte oficial) o
estarem os chefes da revolta, às 6 horas da manhã. . . bêbedos!
Admira realmente que a empresa tolere beberrões de tal ordem.
Bêbedos às 6 horas da manhã! O que não será ao meio-dia?
Quem os vê no seu ofício durante o dia mal pensa que cada um
deles esta já com duas ou três garrafas no bucho. Isso é por força algum
segredo de Ayer. Ou então há criaturas que não se
embebedam para todos, mas para alguns, ao contrário do sol, que, como sabemos, lucet omnibus.
Humildemente peso ao varonil Greenough haja por despedir esses “embriagados de Efraim”, não só para evitar outras
paredes, mas, sobretudo para resguardar a pele dos contribuintes, seus criados.
Dr. Semana.