Badaladas

 


 

Texto-fonte:

Obra Completa, Machado de Assis,

Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.

 

Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

22 de outubro de 1871.

 

Escapamos de boa!

 

Ali ao pé de nós, a vinte minutos de viagem, ali na formosa Niterói, esteve há dias prestes a romper uma guerra terrível - uma guerra entre a província do Rio de Janeiro e a Itália.

 

Dois deputados provinciais propuseram que a assembléia, em nome da província, protestasse “contra o escândalo de que é vítima o Santo Padre” – que esta sendo “acometido insólita e traiçoeiramente em seus direitos incontestáveis”, e cuja posição “é nimiamente precária, injusta, inqualificável, vexatória e atentatória, etc.”.

 

Isto é declarar guerra à Itália, creio que era uma e a mesma coisa.

 

Para sustentar o seu ultimato fez o Sr. padre Alves dos Santos um discurso, não longo, mas entremeado de apartes, com que os seus colegas iam cortando-lhe impiedosamente as asas.

 

O melhor, porém, aquilo em que o Sr. padre Alves dos Santos me pareceu abjurar dos princípios da nossa Igreja, foi um aparte que deu ao Sr. Mattoso Ribeiro.

 

Dizia este seu colega:

 

“— A conquista do território romano nada tem com a religião católica, apostólica, romana, — porque, se o Papa sai de Roma, não se perderá o catolicismo.”

 

Acode o Sr. Alves dos Santos:

 

“– Está muito enganado!”

 

Ó divino Cristo, que pensarás tu ao ouvir esta resposta? Dizias uma necessidade quando afirmavas que contra a tua Igreja não prevaleceriam as portas do inferno. Estavas em erro, meu divino Cristo. A força da tua Igreja não vem da tua doutrina; vem de alguns quilômetros de território. O catolicismo em Roma vale tudo; se o pusessem    em Jerusalém, não valia nada. Verité em deçà, erreur au delà.

 

Victor Manuel deixou ainda uma parte da cidade ao Santo Padre; é por isso que existe a Igreja. Se ele amanhã o expulsasse de lá, acabava-se o catolicismo. Victor Manuel dava cabo da obra de Jesus; podia mais que o inferno.

 

Em trocos miúdos, é a opinião do deputado fluminense.

 

É escusado dizer que todo o católico, e o próprio deputado se refletir no dito, deve repelir tão singular opinião.

 

Em todo o caso, ainda que o orador tivesse razão, não era motivo para que a assembléia provincial rompesse as relações (que não tem) com a Itália. O Sr. Vieira Souto acudiu a tempo, desbastando a moção inicial, com uma emenda que nada compromete, e assim ficou encerrado o incidente.

 

Perguntam-me várias pessoas se não estou disposto a dizer alguma coisa a respeito do caso triste e digno de memória que se deu entre uma freira da Ajuda e o nosso prelado.

 

Respondi que sim, e pretendia navegar nas águas do Sr. Ribeiro Franco, quando o Jornal do Comércio de quinta-feira, em que vem a resposta de um Sr. Apostolo ao irmão da finada freira. Mudei de opinião.

 

O tal Apostolo, depois de algumas expressões que apostam mansidão com as do Evangelho, explica francamente que o pedido da freira era fraqueza feminil; que a carne, a carne, e mais a carne (ils sont très espirituels) não devia ser atendida; que S. Excia. fez ouvidos de mercador (textual) às lamúrias encapotadas da carne (textual) já, solene e irrevogavelmente, renunciada pela dita freira, etc.

 

Depois de tão vigorosa resposta, pensava eu que o Sr. Ribeiro Franco poria termo aos seus artigos.

Mas qual!

 

O irmão da finada quer imitar os comunistas de Paris que também morderam o nosso prelado...

 

Aqui para o leitor, e pergunta se estou zombando dele.

 

Não, caro leitor; não zombo, repito o que nos disse a referida folha:

 

“O nosso sábio e virtuoso bispo foi de modo insólito agredido pelo Sr. José Ribeiro Franco, por um fato bem simples, que bem demonstra que a impiedade desenvolve todos os dias mais força a ponto de não trepidar, como os comunistas de Paris, em erguer o asqueroso colo para fincar dentes envenenados na sagrada pessoa do nosso preclaro e virtuosíssimo bispo, inegavelmente a honra e glória do episcopado brasileiro”.

 

O Sr. José Ribeiro Franco continua, pois, a imitar a comuna de Paris.

 

No seu artigo de quinta-feira censura o nosso prelado por haver dito que S. José era duas vezes onipotente.

 

Não se dá maior impiedade! Bem se vê que o Sr.Ribeiro Franco parou nos evangelistas e nos padres da Igreja. Está abaixo do seu século; anda na aldeia e não vê as casas.

 

O erro do Sr. Ribeiro Franco provém de uma ilusão deplorável. S. S. supõe que nós ainda estamos no Cristianismo, quando essa religião vai senão vantajosamente substituída pelo Marianismo.

 

A demissão do Padre, do Filho e do Espírito Santo pode-se dizer que é um fato; não está oficialmente publicado, mas é um fato. A teoria do Marianismo é que Deus nada pode contra a vontade de Nossa Senhora, e se nada pode, pode menos, e se pode menos é poder inferior.

 

A isto se prende naturalmente a idéia das duas onipotências de S. José.

 

A propósito. . .

 

Corre em Lisboa, já, em 2ª. edição, e sei se aqui também, um livrinho com o título : Novíssimo mês de Maria, ou mês das flores, coordenado pelo padre J. L. L.

 

A devoção de Maria e a consagração que se lhe fez do mês de maio, são coisas dignas de respeito: cumpria, porém, que estas obras, já que estamos no século XIX, se despissem de superstições que não levantam o ânimo do povo.

 

Não li o livro aludido; mas uma folha de Lisboa transcreve um pedaço que aí se lê a págs. 308,309 e 310.

 

Destacarei o primeiro período da transcrição para que melhor se aprecie a doutrina:

 

“Nas crônicas dos padres capuchinhos (cap. 11, part. 1ª.) se conta que em Veneza havia um célebre advogado, o qual com enganos e injustiças tinha enriquecido, e vivia em mau estado. Não tinha talvez de bom mais que rezar todos os dias uma certa oração  à Santíssima Virgem; e contudo esta pobre devoção lhe valeu para escapar da morte eterna  pela misericórdia de Maria.”

 

Leitor sagaz, isto é um verdadeiro achado. Trapaceia como puderes, dá, a tua facadazinha, e fica certo de que escaparás da morte eterna mediante uma oração a Virgem — é a receita mais barata que se conhece. . . renouvellée de Louis XI.

 

Vejamos agora o resto da notícia; precisa ser lida com muita atenção e sem se perder uma linha.

 

Lá vai:

 

. . . E eis aqui como. Por fortuna sua, tomou este advogado amizade com o padre  fr. Matheus de Basso, e tanto lhe pediu que viesse um dia jantar a sua casa, que finalmente lhe fez a vontade. Chegando a casa, lhe disse o advogado: Ora, padre, eu quero-lhe fazer ver uma coisa que nunca terá visto. Eu tenho uma macaca admirável, a qual me serve como um criado, lava os copos, põe a mesa, abre-me a porta. – Veja (lhe respondeu o padre) não seja essa macaca mais alguma coisa: faça-me a vir aqui.

 

“Chamou ele a macaca, tornou-a a chamar, procurou-a por toda a parte, e a macaca não aparecia; finalmente foram achar debaixo do leito, escondida em um vaso da casa ; mas a macaca dali não queria sair. Então disse o religioso: Vamos nós buscá-la. E chegando juntamente com o advogado, onde estava a macaca, lhe disse o religioso: Besta infernal, sai para fora, e da parte de Deus te mando, que declares quem és. Respondeu a macaca que era o Demônio e que estava esperando que aquele pecador deixasse de rezar algum dia aquela acostumada oração à Mãe de Deus porque a primeira vez que deixasse, tinha ordem de Deus para afogar, e levá-lo para o inferno. Com esta resposta o pobre advogado se pôs logo de joelhos pedindo ao religioso que o socorresse, o qual o animou e mandou ao demônio que se ausenta-se daquela casa sem fazer dano a coisa alguma. - Só te dou licença (lhe disse o religioso) que, em sinal de te teres ausentando, rompas uma parede destas casas. – Apenas lhe disse isto, se viu, depois de se ouvir um grande estrondo, feita na parede uma abertura, a qual, ainda que muitas vezes intentaram tapar  com pedra, quis Deus que por muito tempo perseverasse; até que por conselho do religioso se pôs naquela abertura, uma pedra, com a figura de um anjo. O advogado se converteu; e esperamos que dali  por diante continuaria na mudança da vida até a hora da morte.”   

 

Não explica o autor do livrinho, nem a crônica dos capuchos, nem o jornal a que aludi, por que motivo foi Deus buscar para seu instrumento um demônio, podendo servir-se de um anjo, que era muito mais natural. Também não compreendo muito a razão por que Deus não consentiu que se tapasse o buraco da parede, e só depois de muito tempo deixou de fazer oposição a essa obra necessária.

 

São verdadeiros mistérios em que nunca poderá meter o dente o

 

Dr. Semana.

 

 

 

26 DE MAIO DE 1872.

 

Hélas! Pour faire ma chronique

Véridique,

Je n’ai pas dans mon vieux gousset

Un sujet.

 

O vous, poètes, dont la plume

Ne s’enrhume,

Dont la muse fertile sait

Comme on fait

 

Des pages longues et guindées,

Parsemées,

De figures et de propos

Gras et gros,

 

Portez-moi sur vos grandes ailes

Immortelles,

Dans les pays où vous rêvez

Et régnez.

 

Car, tout ce qui n'est pas la prose,

Moi, je n'ose

Traiter dans ce quartier banal

Du journal.

 

Je sais bien qu'en faisant ma course

A la Bourse ,

Je verrais des sujets nombreux

Et fameux.

 

Par exemple, ce grand bagage

Du village

Isabel, dont on voit si haut

L'agio.

 

On ne nous pule que de ventes

Excellentes,

Des changements, des gros paris,

Des gâchis.

 

Puis, la guerre de sa rivale

Qui cabale

Pour defaire tous ses beaux plans

Importants.

 

Quand je lis — avec des besicles

Les articles

(Dont on remplit nos grands joumaux)

Vrais ou faux,

 

Je cherche, en bonne conscience,

L'évidence ;

Je les trouve de deux cotés

Maltraités.

 

Mais, lecteur, suis-je un imbecile

Indocile,

Pour fourrer mon nez de voyou

Dans ce trou ?

 

On parle aussi d'une demande

Très-friande,

Quelque chose de grand qui part,

Tôt ou tard.

 

Ce sont, je crois (ceci est grave,

Je m'en lave,

Les mains on m'a conte ce bruit

Aujourd'hui);

 

Ce sont, je crois, ces deux collines

Si voisines ;

Cele qui porte un vieux couvent

Écroulant ;

 

L'autre où la clique jésuite,

Parasite,

Eut, dans le temps, son grand bureau

Riche et haut.

 

On me dit qu'on veut les abattre;

Un théâtre,

Des beaux squares et des palais,

Puis, des quais,

 

Des rues, un Hotel de Ville,

Quatre mille

Maisons nouvelles, on verra

Tout cela.

 

Mais une idée sérieuse

Et couteuse

Ce n'est pas ce que nous aimons.

Donc, passons.

 

Passons aussi cette querelle

Qu'on appelle

Des francs-maçons, des vieux abbés

Très-roués.

 

Je crains d’éveiller la colère

De l’austère

Monseigneur de l’épiscopat, Lacerda.

 

Il est fin ; et s'il me décoche

De sa poche

Un anathème et lourd et fort,

Je suis mort.

 

Mort, hélas ! et mon corps sans âme,

Vil, infâme,

Ne pourra posséder un trou

Au Cajú.

 

Allons, donc ! Mais voici un membre

De l’ex-chambre,

Qui me demande un aperçu

De mon cru.

 

—Monsieur, lui dis-je, cette guerre

C'est l'affaire

De ceux qui sont au baccarat

De l’Etat.

 

C'est un jeu noble et difficile,

Très fertile,

En coups imprévus et changeants

Dénouments

 

Pour le jouer it faut qu'on aie

De monnaie;

Moi, je suis un pauvre rêveur

Sans valeur.

 

Puis, j'adore toujours ma mie

Utopie,

Une vierge qui perd son temps

Dans vos camps.

 

Car vous êtes des gens pratiques,

Méthodiques,

Réglés, froids, raisonneurs, discrets

Et corrects.

 

Or l’utopie est cette chose

Qui ne pose,

Cette chose que j’aime à voir,

Quand, le soir,

 

Je mets mon âme à la fenêtre

Pour voir naître

La lune, dont l’aimable cour

Fuit le jour.

 

Et, monsieur, si le ministère

Eu la guerre

Pour ne pas conteter à tous,

Voulez vous

 

Trouver un point d’accord facile

Dans la ville ?

Voir ministres et deputés

Très liés ?

 

Qu’ils aillent voir cette charmante

Fleur naissante,

Qu’on appelle Lucinde, et puis

Je vous dis

 

Que si ce beau talent n’efface

Toute trace

De haine, c’est qu’ils sont alors

Presque morts.

 

Mais, quoi! J’ai fait une chronique

Politique?

Parbleu ! ce fut sans le savoir.

Donc, bonsoir.

 

Dr. Semana.

 

 

 

28 DE JULHO DE 1872.

 

Houve um jantar político no Pará. Comeu-se como é de uso nos jantares, e politicou-se, como é de praxe nos jantares políticos.

 

O leitor já está a adivinhar que, não sendo esta folha política, alguma coisa alegre me chama atenção para os brindes publicados no Jornal do Comércio de quarta-feira.

 

Adivinhou.

 

Um dos oradores encetou o seu brinde fazendo uma homenagem ao tipo do bom cidadão. Em seguida, disse que percebera desde o começo do jantar que todas as pessoas presentes rendiam homenagem a um bom cidadão.

 

Mas qual é o sintoma que dá a conhecer a homenagem prestada a um bom cidadão? Que pergunta! É o silêncio.

 

Disse o orador:

 

“O profundo silêncio que reinou durante a mastigação deste banquete, tão suntuoso quanto concorrido de convivas respeitáveis, despertou no meu coração este sentimento: Todos que estão aqui rendem homenagem a um bom cidadão.”

 

Eu peço humildemente ao leitor que acredite no assombro que me produziu a leitura do trecho citado. Ainda na véspera tinha eu jantado com alguns amigos; durante a sopa e a primeira entrada ninguém abriu o bico. Mal sabia eu que rendíamos homenagem a um bom cidadão.

 

Até aqui tinha eu uma boa suspeita de que o silêncio que se observa no começo dos jantares era uma simples homenagem ao estômago. Atrevamo-nos: uma homenagem à besta.

 

Geralmente, quando os grandes jantares começam, está o estômago a dar horas. Daí vem, pensava eu, a mudez com que os convidados se lançam aos primeiros pratos.

 

Vê o leitor que eu fazia uma triste idéia da espécie humana.

 

O autor do brinde foi buscar uma causa mais elevada; levantou o estômago à altura de uma virtude social; fez uma aliança entre a gratidão pública e a couve-flor. Confraternizou, enfim, para usar os seus próprios termos, a homenagem e a mastigação.

 

E não pára aí.

 

Era o silêncio a única homenagem devida a um bom cidadão?

 

De certo.

 

Porque:

 

“Segundo a sentença dos Árabes, o silêncio é de ouro; e só o silêncio, digno de tão numerosa e ilustre concorrência, devia ser a primeira saudação ao distinto cavalheiro a quem é ofertado este banquete, credor de todo respeito.”

 

Isto e uma cacetada na cabeça dos muitos oradores que precedentemente brindaram o dito cavalheiro, era tudo um.

 

Para mitigar o efeito do golpe não se demorou o orador em borrifar um cumprimento, para o qual peço agora toda a atenção dos leitores:

 

”O entusiasmo delicado e discreto, que agora unissonamente aplaudimos, é a cor azul que veio firmar e fazer sobressair mais a eloqüência do silêncio de ouro.”

 

Meditemos.

 

Aquela cor azul é um achado feliz.

 

Um entusiasmo que é a cor azul de um silêncio de ouro, merece toda a atenção dos estilistas. Eu que o não sou, nem pretendo ser, não deixo de ver no entusiasmo — cor azul — um grande recurso para os prosadores.

 

Na poesia sabem todos a vantagem que há muitas vezes em poder empregar uma palavra curta em lugar de uma palavra longa. Por que razão não se dará o mesmo na prosa.

 

Entusiasmo e uma palavra de légua e meia; às vezes cai bem, outras vezes fica mal, não concentra, dilui o período.

 

Mas não acontece o mesmo com azul. Azul é breve e eufônico. Indico, portanto, aos escritores esta substituição facílima.

 

Dirá o jornal:

 

“Fundou-se ontem a Associação para a pesca do marisco. Estavam presentes cerca de 45 membros. O azul produzido pelo discurso do iniciador da idéia é indescritível.”

 

Outro escreverá:

 

“O governo achará sempre frouxo o espírito público enquanto não entrar na via das reformas radicais. Açula-se o povo com grandes idéias, não com rebocos e mãos de cal.”

 

Enfim, um terceiro:

 

”O nosso amigo X chegou no dia 5 do passado a Nioac. O povo ardente, jubiloso, azulado, correu em massa a recebê-lo.”

 

Outra vantagem que nos traz este azul.

 

O entusiasmo tem graus. Há entusiasmo e entusiasmo. Um chega ao delírio, enquanto o outro não passa de animação.Qual será a maneira de os indicar com a simples palavra usada

exclusivamente até hoje?

 

Já não é assim com o azul.

 

Quero eu dizer, por exemplo, que um ator excitou entusiasmo febril na platéia. Exprimo-me assim:

 

”No ato 3.º, na ocasião em que o marquês tira o punhal para ameaçar o conde, esteve o ator X verdadeiramente sublime.O público no seu azul-ferrete, atirou para a cena os chapéus.”

 

Suponhamos que falo de um ator medíocre:

 

“O ator N faz esforços para progredir, e alguma coisa vai alcançando. Nunca será igual ao ator C, mas não há dúvida que sabe despertar na platéia um certo azul-claro, já honroso para ele.”

 

Quem não diria com graça, falando de um orador sagrado:

 

“O padre Z é a verdadeira glória do púlpito. O sermão pregado ontem na Cruz excitou no auditório um azul, que por uma verdadeira coincidência, era azul-celeste.”

 

Vi há dias anunciada uma casa para alugar. Dizia o anúncio que era uma casa nobre.

 

Cogitei largo tempo.

 

— Casa nobre, dizia eu com os meus botões, é sinônimo de família nobre; mas uma família nobre não se aluga. E demais casa, indicando família, não designa só uma aglomeração de membros vivos, mas uma geração, e isso ainda menos se podia alugar.

 

Evidentemente o anúncio aludia a um prédio.

 

Indaguei se o prédio estava aliado com os Ossunas, os Montmorency ou os Northumberland; soube apenas que estava aliado com a cal e a pedra de que fora feito.

 

Donde vinha, pois, a nobreza do prédio?

 

Não me constava que seus avós tivessem ido à Terra Santa. Seus avós foram uns laboriosos pedreiros, que só talvez agora estejam na terra. . . da eternidade.

 

Não rezavam as crônicas nenhum façanha daquele prédio. As mais esmerilhadas genealogias não acharam a mínima gota do sangue dos barões normandos nas suas veias. O prédio datava de 1835, ano que só uma excessiva boa vontade poderá encravar na idade-média.

 

Supondo eu, depois de muita meditação, que o anúncio quis indicar a condição e o aspecto da casa, tomo a liberdade de oferecer aos anunciantes uma série de vocábulos que poderão evitar o calembour.

 

Pode dizer-se:

 

Suntuosa,

 

Bela,

 

Elegante,

 

Magnífica,

 

Soberba.

 

E outros termos que não escrevo por falta de espaço.

 

Sur ce, lecteur, que  Dieu vous aie dans sa sainte garde.

 

Dr. Semana.

 

 

 

1.º DE SETEMBRO DE 1872.

 

Agora prepara-se tudo para a segunda eleição, e não sei porque este sistema parece-me uma cópia das corridas de cavalos.

 

Correm primeiramente todos os cavalos; a última corrida é a dos vencedores das primeiras.

 

Há, como no Jóquei Clube, um prêmio, que não é relógio, nem bolsa, mas uma cadeira na câmara.

 

Na segunda corrida já as coisas vão ser mais sossegadas; a cidade voltou aos seus eixos e o capanga a seus moutons . . até daqui a quatro anos, porque o capanga é imortal.

 

Ide, anjos velozes, a uma gente arrancada e despedaçada, — clamava  o profeta Isaías, e querem alguns que se referisse à América.

 

Referia-se evidentemente ao Brasil.

 

Aquela gente arrancada e despedaçada, o que é senão este povo em tempos eleitorais, arrancando de suas casas pelo subdelegado e despedaçado na igreja pelos capangas?

 

Se me objetarem que Isaías escrevia antes das nossas eleições, responderei que este profeta, podia adivinhar o subdelegado, sem grandes milagres.

 

O que o terrível hebreu não adivinhou é que vamos changer tout cela por efeito de uma folha de papel.

 

Daqui em diante todas as corridas serão como esta próxima de 18 de setembro; haverá o perigo de cair do cavalo abaixo, como nas festas do Jóquei Clube, mas ao menos não se encontrará no chão uma navalha de capoeira.

 

Quem não cai do cavalo, — aludo ao Pégaso — é o poeta das Nuvens da América, o Sr. Martins Guimarães, cuja lira tem para mim uma particularidade altamente apreciável: não canta assuntos rasteiros.

 

O Sr. Martins Guimarães é antes de tudo poeta filósofo.

 

Nefandas instituições, sacrílegas, potentes

Sabiamente num poder equilibrado;

Que o tempo levou em suas rotações,

À luz benéfica dos astros derrotados.

 

Mas, apesar da “luz benéfica dos astros derrotados”, ele bem sabe o poder dessas

 

Tremendas legiões de nefandas éras,

Os povos na ignorância aferrolhando,

Entre os claustros contendores da aristocracia,

E entre altura do seu poder de mando!...

 

Nem ignora também que

 

Presa o mundo de suas tecidas redes,

Morria asfixiado no fanatismo;

Infiltrado dentre úmidas paredes

Do claustro saído com maquiavelismo.

 

Tudo isto era verdade; o quadro é verdadeiro, pintado com as suas cores próprias. O despotismo e o fanatismo reinavam assim; porém...

 

Porém, caiu a árvore do despotismo,

Nefando da ciência dentre nós;

Jaz sumido através dos séculos,

Proscrito dentre as eras dos avós.

 

Não podiam medrar os troncos rugosos,

Das carcomidas instituições vergadas

Que as nações traziam presas,

Às cadeiras da ciência subjugadas.

 

Nem eram os troncos rugosos que não podiam medrar; a hipocrisia também não podia medrar:

 

Não podia medrar a hipocrisia,

E preciso era acabar as crenças dos povos;

Engolfando nos prejuízos das idéias,

Até estes nossos brilhantes séculos novos.

 

Mas se isto é assim, dirá algum crítico mais superficial, se tudo acabou, e se estamos nos séculos brilhantes, que mais quer o poeta?

 

Vem cá, meu crítico atabalhoado; o poeta quer que se torne impossível a volta das eras dos avós. Reconhece que este século é outro, mas não desconhece a possibilidade de voltarmos ao passado.

 

Que faz ele então?

 

Pinta-nos primeiramente o que fomos; depois indica-nos o que devemos ser. Esta segunda parte esta toda resumida nas duas quadras com que fecha a obra:

 

Preciso é educar o povo e instruí-lo,

Longe da crença supersticiosa dos conventos;

Despindo a velha igreja de suas galas,

Enfeitá-la d'outros modernos paramentos.

 

E apresentá-la em sua pureza de verdade,

Qual noiva trajando novas galas;

Do ouropel da falsidade despojá-la. . .

Apresentando-a com seu brilho nas salas.

 

Como viu o leitor, não é o Sr. Martins Guimarães um poeta de luares e nevoeiros; não voa de noite, apegado aos raios das estrelas.

 

Seus assuntos são humanitários e filosóficos. Assim tem lido até hoje; assim o será, creio eu, até morrer.

 

Dr. Semana.

 

 

 

22 DE SETEMBRO DE 1872.

 

O Jornal do Comércio publicou há dias uma interessante notícia, que talvez escapasse à atenção do leitor.

 

Noticiou o Jornal que o Mikado (soberano espiritual do Japão) promulgara uma nova religião, formada do resumo e extrato de várias seitas do país.

 

Deve ser um singular povo, o japonês. Receber uma religião pelo Diário Oficial, como quem recebe uma nova tarifa da alfândega, é levar o culto da administração muito mais longe do que um povo do nosso conhecimento.

 

Deita-se um homem acreditando que a gula é um pecado mortal e que as boas obras são necessárias à salvação.

 

No dia seguinte, entre o café e o charuto, noticia-lhe o Boletim das Leis que a gula passa a ser um pecado meramente venial, em certos casos uma ação indiferente, em alguns — raríssimos — um feito virtuoso, e que, a respeito das boas obras, são elas tão necessárias à salvação como duas apólices a um defunto, tudo com a rubrica de Sua Majestade.

 

Bem vejo que a religião assim constituída é essencialmente progressiva, e não haveria razão para que não entrasse no programa dos partidos constitucionais se o Japão os houvesse no sentido em que os tem a civilização do ocidente.

 

Os liberais, por exemplo, prometeriam, ao lado da reforma do correio, a supressão de uma doutrina relativa às potências da alma.

 

Os conservadores, entretanto, não só proclamariam a excelência do correio (falo do Japão) como a necessidade de conservar e até desenvolver a doutrina das potências da alma.

 

Determinou esse homem no testamento que o seu corpo fosse pesado, e que o valor do seu peso em cera fosse dado a certa ordem a que ele pertencia.

 

É difícil perscrutar a razão de semelhante minuciosidade.

 

A intenção foi de certo boa, e se devemos respeitar a intenção dos vivos, muito mais devemos respeitar a intenção dos mortos.

 

Nem por isso é menos embaraçosa a situação em que ficamos.

 

Se acode ao peso na salvação o peso do corpo, o reino do céu fica fechado aos magros.

 

Quem for gordo tem certeza de não ir ao purgatório, pelo menos de não ir por muito tempo. Não acontece o mesmo ao magro; o magro mal poderá dar de si com que purgar dois ou três pecados.

 

E pecados tanto os comete o magro como o gordo. Quero crer até que o magro é mais pecador.

 

Há na gordura certa pachorra, certa preguiça, que até de pecar afasta a criatura. O gordo bufa, vegeta, joga o solo e faz muitas outras coisas inocentes, que o magro não faz ou faz raramente.

 

Portanto, leitor, se queres que te pesem o cadáver, engorda primeiro, faz-te arroba, faz-te tonelada, e irás ao céu.

 

Ao céu irá provavelmente a nova câmara municipal se mandar corrigir a ortografia do nome da rua do Passeio, esquina da rua das Marrecas.

 

Rua do Passeio e o que está, ali escrito.

 

Não se usa.

 

 

 

20 DE OUTUBRO DE 1872.

 

A notícia dada por um jornal paraense de que um candidato se envenenara ao saber do resultado de alguns colégios eleitorais, tem-me dado que pensar até hoje.

 

O mesmo acontece ao meu moleque.

 

Nhonhô, dizia-me ontem este interessante companheiro de doze anos, ser deputado é então uma coisa muito superfina. Ninguém se mata porque não tirou a sorte ou porque perdeu o primeiro ato do Ali-Babá.  

 

— Assim é, respondi eu, conquanto uma eleição seja mais ou menos uma loteria. Poucos prêmios e muitos bilhetes brancos.

 

Nem será difícil achar semelhança entre uma eleição e uma mágica; avultam em ambas as visualidades e tramóias. Até há música na eleição: variações sobre motivos dos queixos. Há também fogos de. . . bengala.

 

Em todo caso, querido moleque meu, custa-me a engolir a notícia, que me cheira a carapetão. Ser deputado é bom, direi até excelente; mas, com seiscentos fósforos!não é motivo para entrar na eternidade!

 

...... O que? Se eu nego o suicídio político? Não, moleque, eu não nego o suicídio político. Eu tenho notícia da morte de Catão.

 

Todavia, três colégios eleitorais não fazem uma Pharsalia, nem a república expirou em Serpa.

 

Eu compreendia o suicídio político (ainda que anacrônico), se a eleição do candidato estivesse ligada a sorte da liberdade e da nação.

 

Bem, direi eu, aquilo já não se usa; ninguém se mata hoje por essas duas moças; mas em suma o candidato era um romano transviado no século XIX. Viu que depois da expressão das três urnas a constituição era simplesmente o nome de uma praça no Rio de Janeiro e uma fórmula de terminar decretos.

 

. . . Pátria, ao menos,

Juntos morremos!. . .

 

E expirava com a pátria, e eu não tinha nada que dizer nem duvidar.

 

Mas duvido e duvido muito. A folha do Pará tem obrigação de verificar a notícia e informar os seus leitores, em cujo número estou.

 

Na cidade de Porto Alegre há grandes queixas contra as badaladas... Descansem; falo das badaladas dos sinos.

 

Há abusos, dizem as folhas, nos toques dos sinos por ocasião de cerimônias fúnebres.

 

Que fez então o governador do bispado?

 

Ordenou imediatamente que cessasse o abuso, transcrevendo vários artigos da Constituição sinodal.

 

Até aqui tudo vai bem.

 

Notei, entretanto, na Constituição sinodal uma coisa, que naturalmente tem explicação, mas que eu não compreendo.

 

Diz-se aí que por um homem haverá três badaladas, por uma mulher duas, e por uma criança uma, ou seja macho ou fêmea.

 

Ora, por que motivo os filhos de Adão terão direito a mais uma badalada do que as filhas de Eva?

 

Um defunto é um defunto.

 

Não há necessidade, penso eu, de indicar aos fregueses da paróquia o sexo do cristão que cessou de viver, porque o padre-nosso é um para todos, e se as três badaladas querem dizer que os fiéis devem rezar mais alguma coisa, quando se trata de um homem, há nisto uma tal parcialidade masculina, que eu não posso deixar de a denunciar ao sexo oposto, como dizia um deputado provincial.

 

Repito, há alguma razão que eu não compreendo, e por isso limito-me a exprimir a dúvida.

 

Para alguns leitores fluminenses há de parecer curioso que ainda exista o uso dos toques fúnebres no Rio Grande.

 

Isto me faz lembrar que também o tivemos aqui, e que se acabou, naturalmente por pedido dos fiéis, o que inspirou algumas belas linhas ao folhetinista do Jornal do Comércio em 1854.

 

Não o tenho à mão; mas lembra-me que ele lastimava que se houvesse posto termo ao uso dos toques fúnebres e pedia a vinda de algum Chateaubriand que nos reescrevesse o que o outro havia dito da poesia religiosa dos sinos.

 

Não é preciso dizer que o Chateaubriand não veio.

 

Em compensação veio o Zuavo da liberdade.

 

Uma correspondência do Apóstolo critica um redator do Pelicano por afirmar que Galileu dissera: e pur si muove.

 

Quer o correspondente que devesse dizer: e pur si muovere.

 

Isto espanta-me !

 

Conversavam X e Z a propósito da festa da Penha. Z perguntou donde vinha o uso da romaria.

 

O interrogado ia justamente perguntar a mesma coisa, mas não hesitou em responder:

 

— É um uso romano. A austera república tinha esses dias de festa, semelhantes às férias latinas, e era então que todo o povo dava largas ao prazer. Pode-se dizer que nessas ocasiões Roma ria.

 

DEFINIÇÕES

 

Calça de meia: eufemismo da perna.

Luar: — rio francês que se pode ver em toda a parte.

 

Bossas: — protuberâncias no crânio, onde nunca se demoram os ratoneiros, porque as passam. Verdade é que tem medo de passá-las sozinhos; passam com — C — cedilhado.

 

Beijo: — principio fim.

 

Carraspana: — forma popular do good spirit.

 

Olhos: — batedores do coração.

 

Dois proprietários:

 

— Não há como as salas pequenas com seus tetos baixos e naturalmente pequenos. Eu não posso olhar para um teto grande e alto.

 

— Eu sou justamente o contrário; para mim, um teto deve ser um arquiteto.

 

No Jornal do Comércio de quarta-feira dá G. F. a Ti o seguinte aviso:

 

“Ontem te passei uma carta dentro da grade: desejo saber se a recebeste.”

 

Esperei ansioso o Jornal de quinta-feira para ver a resposta de Ti e ficar tranqüilo a respeito da sorte de G. F.

 

Céus! Nem uma linha.

 

Em compensação, se não achei a resposta que esperava, achei estas poucas linhas merecedoras de atenção: é uma despedida.

 

N.

 

 

Não te posso mais escrever, apanhei agora este meio para te dizer que decididamente temos que nos separar para sempre, esquece o meu juramento, não desejo dar desgosto a minha mãe, quando eu tenha idade e tu saúde e emprego honesto, então veremos. M.

 

Peço desculpa à menina M.

 

S. Excia. parece-me extremamente fácil em despedir o namorado.

 

Em primeiro lugar participa aos leitores do Jornal que ele é doente e tem um emprego desonesto. Que emprego será?!

 

Isto é o menos:

 

O mais é isto:

 

A menina M jurou ao seu N amá-lo eternamente como essas coisas se juram.

 

Devo crer que falava com toda a sinceridade do coração.

 

Mas sua mãe opõe-se ao casamento; o caso é grave; ela é sua mãe; viu naturalmente que o emprego do namorado é desonesto e que este de mais a mais não tem saúde.

 

Que faz a menina M?

 

Diz ao namorado: “esqueça o meu juramento.”

 

E dadas tais circunstâncias,

 

“Então veremos!”

 

Pedir-lhe que esqueça o juramento é já muito; mas o “então veremos” permita-me S. Excia. que lhe diga, e que lhe diga a francesa: c'est raide.

 

Equivale a dizer:

 

“Se daqui até lá eu não tiver outro namorado, e se você já estiver curado e honestamente empregado, então pode ser que a plausibilidade de uma esperança vaga e toda conjectural nos reúna outra vez.”

 

Queira perdoar se me engano.

 

Acabava de escrever estas linhas quando me caiu à mão o Jornal do Comércio de ontem.

 

N aceita a despedida; declara, porém, que não se esquecerá dela nem do juramento.

 

Com razão; vê-se que ama. Poderia acrescentar que a primeira a não esquecer o juramento devia ser ela.

 

Em todo o caso desejo que sejam felizes, que volte a saúde ao namorado, que nela não se apague a lembrança dele, e que, vencida a repugnância da mãe, ambos se casem e vivam muitos anos.

 

 

 

3 DE NOVEMBRO DE 1872.

 

Em que cidade estamos?

 

A câmara municipal diz-me, afirma-me, convence-me de que estamos no Rio de Janeiro. Os polemistas políticos, entretanto, só me falam de Roma.

 

Roma para aqui, Roma para ali. O Jornal do Comércio só é nosso em pouca coisa; quase tudo é discutir a cidade eterna, não a moderna, mais a outra.

 

Qui nous delivrera des Grecs et des Rornains?

 

O caso é que eu já não estou certo se sou um badaladeiro fluminense ou simplesmente o flautista Ambrosius

 

Tanto me romanizaram que eu penso vestir a toga quando envergo a casaca !

 

Há dias mandei uma carta ao livreiro Garnier, via Appia. O correio não hesitou; foi levá-la a Niterói.

 

E a cadeia velha? Não há nada que se pareça menos com o Capitólio; entretanto, quando agora ali passo, parece-me sempre que estou a ver a sombra dos gansos.

 

— Quando vai para baias? Perguntei eu a um amigo. 

 

— Serei eu cavalo?

 

— Perdão; pergunto quando vai para Petrópolis.

 

Não me admirará, pois, se o leitor também andar atarantado com estas transformações. A. culpa não é minha nem dele, é da política.

 

Trata-se de saber, em primeiro lugar, se isto é Roma; em segundo lugar, se Roma foi uma nação imitável.

 

Dividem-se as opiniões; uns dizem que não, outros dizem que sim; alguns não dizem sim nem não; outros dizem sim e não; não falta quem diga sim-não, à maneira homem-mulher.

 

E não se me dará de apostar dez mil sestércios em como uma parte dos leitores é desta última categoria.

 

Efetivamente em alguma coisa havemos de parecer-nos com os romanos, quando mais não seja, na língua,

 

... na qual, quando imagina,

com pouca corrupção crê que é latina.

 

Ao mesmo tempo em alguma coisa há de haver diferença entre eles e nós.

 

Pela minha parte, afirmo que estive ontem com Lucullo.

 

Esse apreciador de bons manjares conversou comigo mais de uma hora. Éramos três e uma moça. A moça tinha ao ombro um pombinho ainda mal empenado, desses a que chamamos borrachos.

 

— Oh!Coitadinho! disse eu.

 

Lucullo juntou os dedos da mão direita, levou-os assim à boca, estalou um beijo e exclamou:

 

— Isto com ervilhas! ...

 

Mas nem Lucullo nem os escritores romanistas dão assunto cabal para a crônica.

 

.  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  

 

E a propósito de loterias.

 

Aqui mesmo, há anos, tive ocasião de notar que algumas irmandades embaçavam a lei, vendendo um bilhete singular. Não diziam que em tal data o portador do bilhete teria de ser inscrito como irmão, e desde já lhe ficava marcado a jóia de tanto.

 

Vêem os leitores que há duas coisas aqui repreensíveis.

 

 A primeira é embaçar a lei.

 

A segunda é ... como direi? ... é pregar uma peta, o que, se é mau num homem do mundo, deve ser péssimo em pessoas que ocupam os lazeres no serviço divino.

 

Mas provavelmente o que eu então disse mereceu o mesmo sorriso que há de agora assomar aos lábios do leitor, mau sintoma, porque o desprezo da lei não é romano nem revela saúde.

 

Não é romano, mas revela alguma saúde o contrato teatral que o presidente da Bahia acaba de celebrar com uma empresa.

 

Um dos artigos estabelece, entre as obrigações da empresa, esta:

 

“8.º — Auxiliar quanto lhe seja possível o Conservatório Dramático para a fundação de uma escola que eduque e instrua as pessoas de ambos os sexos que se  quiserem dedicar à arte dramática, prestando-se  ele, empresário, e seus artistas a ensinar gratuitamente durante este contrato qualquer matéria para que o mesmo Conservatório julgue-os, e dar outrossim, até dois espetáculos em favor da dita escola, quando criada.”

 

Desta maneira temos a Bahia com uma escola dramática meio fundada, enquanto a capital do Império está ainda num doce desejo, numa vaga esperança.

 

A escola, não só tem a vantagem de educar os atores, mas também a de atrair vocações. Escola não temos; vocações novas creio que não aparecem; não as há pelo menos dignas de futuro.

 

Estamos, portanto condenados a ver desaparecer o cenário atual, sem outro que o substitua convenientemente.

 

Venha o remédio; empreguem-se os recursos da medicina.

 

Mas o leitor está achando isto muito grave, e pergunta-me naturalmente, ao ler a palavra medicina, se eu conheço a sua etimologia.

 

Por que não?

 

A etimologia de medicina é, como acontece com outras palavras, uma lenda.

 

Conta-se que, no tempo do rei Numa, o corpo médico era composto unicamente de coveiros, regidos por um coveiro-mor, chamado Cinna, avô, dizem, da tragédia de Corneille.

 

Adoecia um romano (eterno romano!) iam os coveiros a casa do doente medir-lhe o corpo para abrir a sepultura.

 

— Mediste, Caio? Perguntava o chefe.

 

Medi, Cina, respondia o coveiro oficial.

 

Daí, etc.

 

Agora o que não é lenda, mas coisa muito real, talvez realista, é este aviso de um N a uma N:

 

 “N...

 

“Não é possível nos dias que dias que marquei segunda-feira, por caso de força maior; no dia que tiver lugar que te disse, de novo te comunicarei por este meio. Estarás de saúde? Sempre teu até a ...”

 

P.S. — Lembranças. — N.”

 

Até à morte, queria ele dizer, mas parece que não quis comprometer o futuro.

 

Não sei se sabem que estamos com a perspectiva de ouvir sinos por música.

 

Vejo no Jornal do Comércio que uma pessoa, recentemente chegada, se oferece para dar-nos este melhoramento.

 

Realmente, com as tendências musicais que temos, não é mal ouvir sinos por música. Mas que música será? Sacra ou profana? José Maurício ou Carlos Gomes?

 

Não sei se faria bom efeito o Addio del passato executado nos sinos de S. José; mas estou convencido de que os dobres das dez horas da noite, com que ainda nos matraqueiam a cabeça, podiam ser substituídos pelo Bonne Nuit, da Grã-duquesa ou o Bonsoir, Mr. Pantalon.

 

Em todo caso venha o melhoramento.

 

Dr. Semana.

 

 

 

29 DE DEZEMBRO DE 1872.

 

Enfim, está, pois pelas costas este ano de 72, que não foi, como aquele de que falava o Garrett, “inútil como um cônego.”

 

Não foi.

 

Quando mais não desse, deu as nossas eleições, com acompanhamento de tiro, como as do Ceará, ou simplesmente de rolo, como as da Corte.

 

Nada me alegra mais do que este exercício da soberania nacional... no papel;é verdade, no papel, apesar de não saber ler a soberania nacional.

 

Deus traga a reforma. Se não der tudo (e é difícil que dê metade) estamos esperando que dê alguma coisa. Façam os legisladores uma obra que não seja o mesmo peixe com outro molho. Não é do molho que nos queixamos, mas do peixe, e sobretudo das espinhas.

 

E se algum legislador me der a honra de ler estas linhas, e torcer o nariz, como quem estranha que eu meta nestes assuntos a minha colher queimada, peço a palavra para responder com esta razão decisiva:

 

A minha cozinheira Celestina é apenas cozinheira, aliás, perita, e, todavia.. .

 

E, todavia atreveu-se há dias a explicar a trovoada ao meu moleque. Verdade seja que o fez nestes termos:

 

— A trovoada são os astros quentes que se encontram com os outros frios.

 

Nem é só dada a estes estudos. Tem seus laivos de poesia entre a carne e a batata. No meio das preocupações culinárias brota-lhe não raro a flor da inspiração.

 

Houve ultimamente belas noites de luar. Uma, sobretudo esteve maravilhosa. Que admira que a dita cozinheira se extasiasse ante esse espetáculo a um tempo delicioso e solene?

 

— Que noite! (exclamou ela). As ondas estão tão quietas! tão pequenas !Parecem passarinhos. Que artista seria capaz de fazer assim.. . uma peça de chita ?

 

Ora, se a cozinheira Celestina podia assim explicar a trovoada e comentar a natureza, entendi que alguma coisa podia ela dizer igualmente da política, e firme nestes princípios (frase parlamentar), perguntei-lhe que pensava de uma câmara.

 

Direi a resposta da interessante senhora, não sem pedir aos leitores que lhe não torçam o nariz, em primeiro lugar porque nariz torcido fica muito feio, e depois porque da cozinha pode nascer uma boa idéia, ex fumo dare lucem.

 

— A cambra é como o outro que diz a cozinha. A diferença a que eu perparo a janta e os deputados preparam as leises. Meu amo às vez não gosta de uma ou outra comida, porque não saiu bem feita; as leises o mesmo. A diferença é que meu amo ralha comigo, e a cambra é que ralha com meu amo. E se meu amo, que me paga, não apreciar o meu cozinhado, faz-me sair de casa; não faz o mesmo com as leises; se meu amo não as achar boas, se estiverem ensossas, ou tiverem sal de mais, ou saírem cruas, meu amo há de tragá-las, muito caladinho...

 

Aqui tive pena da ignorância da pobre velha e desci da augusta indiferença com que a ouvia, dizendo-lhe:

 

— Sim, mas tenho o voto nas eleições...

 

Celestina pediu-me respeitosamente licença para rir. Admiti essa liberdade ela gargalhou uns dois ou três minutos e continuou:

 

— A eleição a como se meu amo, enfadado da minha janta, fosse pedir ao padeiro da esquina que influísse no caixeiro da venda para me dar uma repreensão.

 

Observei a Celestina que a sublimidade do meu espírito não podia compreender uma parábola tão rasteira.

 

Ao que ela respondeu pondo as mãos nas ilhargas:

 

— Que faz meu amo na eleição? Vota num homem porque tem o nome comprido, e esse vota n'outro porque tem o pescoço curto. Ora, meu amo, que tem as costas largas, fica como se lido tivesse vot...

 

A chegada do meu amigo Bento interrompeu esta conversa culinário-política.

 

Não é pessoa de cerimônia o meu amigo Bento; veio visitar-me; e companheiro de longos anos.

 

Antes de me despedir dele, contarei ao leitor um trocadilho que ele fez sem querer, só porque emprega erroneamente uma locução.

 

Achou-se há dias na polícia e ouviu falar de uma mulher que deu uma facada num homem. Facadas (pecuniariamente falando) levá-las qualquer homem; mas aquela não foi no sentido metafórico, senão no natural.

 

Todavia (e aqui se patenteia o coração do meu amigo Bento) ouviu falar que a mulher recorrera àquele expediente eleitoral porque o dito homem, desprezando o seu amor, andava cortejando uma viuvinha.

 

Bento quis a todo transe contemplar essa vítima do amor. O delegado de polícia mandou-a buscar. A vítima subiu ao gabinete.

 

— A senhora é que é a ré? Perguntou o meu amigo Bento com ar compungido.

 

— Sim, senhor.

 

Tenho do de si!

 

Livre da Celestina e do Bento, fui examinar os jornais de S. Paulo, que nesse instante chegaram do Correio.

 

Rompo cuidadosamente o selo, que estava limpo e me podia servir noutra ocasião (. . . , que toma o nome de economia), abro uma folha, e que hei de ver, leitor ?

 

Um artigo em prosa e verso do nosso conhecido poeta e literato Martins Guimarães.

 

Li-o de um trago.

 

Quanto a falar dele há de ser no ano novo.

 

Não se guardam vinhos novos em odres velhos. Há escritos que requerem anos novos; sim, leitor, anos novos, muito novos, anos em flor.

 

Dr. Semana.

 

 

 

2 DE MARÇO DE 1873.

 

Ia começar estas badaladas com algumas reflexões acerca da Batalha de Aquidaban, cujo aniversário foi ontem, quando recebi da Eternidade uma carta importante, assinada por um nome ainda mais importante do que ela: uma carta de Montesquieu.

 

A carta vinha acompanhada de um bilhete, que dizia assim:

 

Dr. Semana. — Dê-me um cantinho de seu jornal e insira nele a carta junta, favor de que lhe será grato o seu constante leitor. — Montesquieu.”

 

Não hesitei um momento; mandei inserir a carta que o leitor verá com olhar de respeito e veneração; ei-la:

 

MONTESQUIEU AO SENADOR JOBIM

 

Eternidade, sem data.

 

Exmo. Sr. — Acabo de ler o discurso que V. Excia. Proferiu há dias no senado brasileiro, e conversando com os meus amigos, patrícios e co-imortais Voltaire e Rousseau, fomos de opinião que é um discurso digno de ser lido, meditado e comentado.

 

Verdade é que o nosso Voltaire — sempre brincalhão e sarcástico — ao passo que lhe teceu grandes louvores, fez um reparozinho de má língua. O exemplo foi contagioso, e o nosso Rousseau fez outro, o que me obrigou também a fazer um terceiro, sem que todos três valham um cominho.

 

Que quer Exmo.sr.? Em alguma coisa se há de ocupar a eternidade. Há lá nesse mundo quem se afadigue em matar o tempo. Oh! Se soubessem o que é matar a eternidade! O tempo, Sr. Senador, não é preciso matá-lo; ele morre por si mesmo. Não se lembrará V. Excia. Daquele verso do nosso Racine, creio eu:

 

Le moment ou je parle est déjà loin de moi.

 

Pois aí tem a imagem do tempo. Que necessidade há, pois, de matar um sujeito que nasce caduco e vive a morrer? A eternidade é outra coisa; é a presença constante e impassível de uma coisa que nunca mais acaba e isto é o que se deve entreter com palestras, leituras e reflexões.

 

Líamos, pois, o discurso de V. Excia., e refletíamos a respeito das suas várias doutrinas, quando o nosso Voltaire, entrando no ponto em que V. Excia. fala das relações entre os climas e os governos, exclamou:

 

— Cite o autor!

 

E dizendo isto piscou o olho a mim e ao João Jacques, dando a entender que eu, primeiro, e ele depois trataríamos da teoria expendida anonimamente por V. Excia.

 

O João Jacques riu-se a bandeiras despregadas. Eu, porém, tomei defesa de V. Excia. como me pediam a verdade e a justiça.

 

— O senador Jobim, disse eu, pode estar obrigado a não citar o autor; pode ser que fosse tirar a idéia da algibeira de Aristóteles, e que Aristóteles lhe recomendasse o mais profundo silêncio. Aquele grego é um bom homem; socorre a muita gente nas suas precisões; e eu mesmo (não é por me gabar) obedeço ao evangelho, não sabendo muita vez a minha esquerda o que a minha direita distribui.

 

Voltaire — le petit Arouet, como lhe chamamos aqui — ia abrindo a boca para falar, mas eu fiz-lhe um sinal e continuei assim:

 

— Demais, a teoria dos climas na mão do Sr. Jobim apresentou-se com roupagens novas. A idéia de que a imaginação é incompatível com a eleição direta é absolutamente nova debaixo do sol. A afirmação de que “nos países do norte não há governo que se anime a praticar nenhum atentado contra a razão e a justiça”, transtorna algumas idéias recebidas na história. Mas que é tudo isso senão o cunho da originalidade do orador?

 

Os dois filósofos calaram-se, vencidos pela minha demonstração. Mas não foi longo o silêncio. Rousseau, que lia para si o resumo do discurso, bateu com a mão no joelho e exclamou:

 

— Cite o autor! Cá está mais uma:

 

. . . Os homens bons assustam-se, e antes querem um leão que os devore, que um milhão de ratinhos que os roam!”

 

— Isto é meu!acudiu Voltaire, dando pulo.

 

E depois de ler:

 

— S. Excia. honra-me muito fazendo suas as minhas palavras, mas era justo citar o meu nome, e bem assim transcrever-me fielmente. O que eu disse foi: —“J’aimerai mieux vivre sous la patte d’un lion, que d’être continuellement exposé aux dents d’un millier de rats.  Foi isto o que eu disse; e pode ser que no Brasil, quem não cita exatamente as palavras de outro, esteja dispensando de lhe citar o nome. Em todo caso não tira isso o mérito do discurso. . .

 

Aqui, Exmo. sr. meti-me eu também a censor, mais por brincar que por outra coisa, e sobretudo levado pelo mau exemplo dos dois filósofos. Lia o discurso e dei com isto: Essa outra invenção, também imensamente ridícula, — o rei reina e não governa. É um trocadilho insuportável, e que foi inventado na França pelo Sr. de Narbonne...”

 

— Agora citou o Sr. Jobim, disse eu, mas creio que citou erradamente. O aforismo é do Sr. Duvergier de Hauranne, se não estou enganado . . .

 

— Seja como for, não se pode negar o mérito do discurso.

 

— Não se pode, repetimos nós!

 

E aqui tem V. Excia. fielmente contada a nossa conversação a respeito do discurso de V. Excia. Sinto havê-lo lido em resumo, mas pelo resumo se admira a íntegra.

 

Nós aqui, Exmo.sr., apreciamos e lemos tudo o que se diz nas câmaras brasileiras. Lá de longe em longe levamos uma estopada; mas se esse mundo é de compensações, não menos o é esta eternidade em que vivemos, e onde me acho ao seu dispor, como quem é

 

De V. Excia.

 

Atento venerador e criado muito obrigado,

 

MONTESQUIEU.

 

Ando há dias a perguntar a toda a gente se é certo que no teatro de Pedro II apareceu um dominó (imitação de outro que, a serem verídicos os jornais, apareceu este ano em Paris) com uma inscrição singular nas costas.

 

Ninguém me sabe responder. Seria peta ou só encontro as pessoas que o não viram?

 

Dizem-me que era um dominó azul com fitas amarelas; nas costas trazia um letreiro assim:

 

P

A

 

Mais de um quis decifrar o enigma e nada. Afinal um bom velho, Champolion do Carnaval, deu com a chave do mistério, e leu: Allons souper (A long sous p).

 

— É, respondi, dando-lhe o braço.

 

— Há na rua Uruguaiana um botequim francês com uma tabuleta em que se lê:

 

CAFÉ

DE

ALSACE

ET

LORAINE.

 

Com este cotilhão termino o meu sarau.

 

Até domingo.

 

Dr. Semana

 

 

 

1º. DE JUNHO DE 1873.

 

Hoje a minha primeira palavra é de agradecimento. Agradeço ao Sr. deputado Araripe o haver perfilhado a reflexão que fiz acerca do nome da nova província, e proposto na câmara outro nome menos sujeito a confusões.

 

Não sei se passará a emenda; mas ao menos se algum dia ouvirmos na câmara um destes rasgos de eloqüência:

 

— Senhores com orgulho o digo: um franciscano não receia comparações.

 

Se algum dia um presidente da nova província, em caso de guerra, chamar os seus povos com este melodioso verso:

 

“Franciscanos, surgi! eia! sus!”

 

Se algum dia um tradutor francês, levado pelo equívoco do nome, exclamar espantado: “C’est à ne pas y croire! Le Brésil compte encore quatre-vingt-dix-neuf-mille franciscains. Combien faut-il des couvents pour tous ces gens-là? 

 

Se tudo isto acontecer, e mais alguma coisa, nem o Sr. deputado Araripe nem eu temos culpa ambos demos aviso do mal.

 

Espero que o leitor nada me peça acerca do tumulto do Recife, que provavelmente condena, sobretudo se é maçom. Se a vitória da maçonaria estava longe de ser segura, creio que agora é ainda mais duvidosa.

 

Demais, o pau como pau é sólido, ou pode ser sólido; como argumento, é fraco.

 

O soco não é um silogismo perfeito; o cascudo é uma demonstração profundamente medíocre.

 

Bem sei que em certos casos a gente perde as estribeiras. Felizes os pachorrentos que nunca se abalaram por nenhuma coisa neste mundo. Mas, em suma, a razão devia dominar os fiéis de Pernambuco; eles deviam esperar até o fim.

 

E já, que, sem querer, dei opinião acerca dos amotinados, quero ser justo dizendo o que penso do Sr. bispo naquela ocasião.

 

S. Excia. fugiu para Olinda. Pois perdeu uma ocasião única de comentar brilhantemente o seu zelo, que era ficar no lugar do perigo, cair defendendo as prerrogativas do cargo, confessar a fé, mostrar-se ainda mais digno do nome de cristão.

 

O fugir é vulgar, é ordinário, é nimiamente terrestre, é João Antonio, é qualquer coisa, é o leitor, é este seu criado.

 

Que iam fazer os amotinados a Soledade? Iam desforrar-se de uma decisão espiritual do prelado. Era ocasião única de mostrar a sinceridade do zelo e a tranqüilidade da fé. Por isso, do mesmo modo que estranho o movimento, estranho a fuga; e deixo este ponto para apresentar aos leitores o Sr. Carvalho.

 

O Sr. Carvalho é poeta, e poeta religioso. Até aqui tudo vai bem. Não direi que seja tão grande como o padre Caldas; não é, mas por causa do gênero. O Sr. Carvalho cultiva um gênero mais seu que de ninguém.

 

Acho-me aqui diante de uma saudação a Pio IX, cuja primeira estrofe acaba assim:

 

Pensai, maçons; tremei, ímpios!

Tremei, malditos ateus!

 

Toda poesia revela que os sentimentos de piedade do poeta são sinceros, mas que as leis poéticas da obra são. . . um tanto especiais. Esta estrofe, por exemplo, é galante:

 

Salve! constância divina

Circunscrita ao Vaticano!

Vítima santa imolada

Ao ímpio furor humano!

Salve, Pontífice excelso,

Prodígio?. . .divino arcano!. . .

 

O principal é o fim; a chave é de ouro. Estou que o Santo Padre não aceita a idéia do poeta. Sabe o leitor católico, que Jesus Cristo perdoou aos judeus que o crucificaram, exemplo de misericórdia e mansidão, que o poeta duvida se pode ser dado por Pio IX.

 

Para melhor entender a coisa, transcrevo a estrofe:

 

E perdoa, se é possível,

Aos vis, aos novos judeus,

Que em ti não reconhecem

Um enviado dos céus!

 

Se é possível!

 

Estou convencido de que o Papa não aceita o condicional. Reclama naturalmente contra os invasores dos seus Estados; mas perdoar-lhes, quem poderá duvidar disso?

 

Os versos do Sr. Carvalho levam-me a pensar na mentira que todos os dias anda nos nossos lábios.

 

Nós dizemos: perdoa-nos as nossas dívidas, assim como perdoamos os nossos devedores. Peta! Ninguém perdoa aos seus devedores. O meu alfaiate não me perdoa um fio de pano; o sapateiro não me perdoa um tacão de bota. Ninguém perdoa nada.

 

Será das dívidas morais, as ofensas? Isso é dívida que não prescreve. Um credor ainda perdoa. . . quando o devedor lhe não paga ou morre sem herança. Mas o sujeito a quem chamei tolo, a moça que me ouviu dizer que era vaidosa, esses rezam o seu padre-nosso, mas não me cumprimentam.

 

Nós temos todos assim uma humildade de liturgia, uma singeleza de vocábulo. É por isso que eu entro em dúvida se ainda há cristãos neste mundo. Penso que, se os há, estão escondidos, ou pelo menos andam incógnitos.

 

Agora, vamos fechar isto com a chave de ouro do costume.

 

Conhece o leitor o Sr. Pedreira Braga? É um poeta, um poeta nestes dias de prosa. Tem escrito versos mui apreciados, entre outros uns em louvor das bibliotecas, obra de rara energia e harmonia.

 

Seus versos não são esses versos chatos, incolores, amarelos com que nos andam a amolecer os ouvidos alguns aspirantes ao petrarquismo. Pelo contrário, são fortes e duros como o bronze, vastos como a amplidão, revelando a cada instante uma novidade de idéia, uma originalidade de vocábulo, o que tudo prova a altura do seu talento e o grande futuro da sua inspiração.

 

Aqui tenho diante de mim três estrofes, três pérolas, três diamantes da melhor água. A um poeta morto é o título; e vale a pena morrer para inspirar tão gentis pensamentos. O Sr. Pedreira Braga não é certamente o nosso Victor Hugo, mas sente-se que aspira a alar-se às alturas do poeta das Contemplações.

 

Quem já compôs entre nós estrofe semelhante a esta?

 

Poeta: eras eleito! Com a essência de um arcanjo

Em ti Deus misturara o espírito de um Vagre:

Respira, pois, que a glória é a mesma: é sempre o anjo

Que a cada Cristo oferta um cálice de vinagre.

 

Vinagre é um vocábulo pouco suscetível de rimar em poesia elevada; o Sr. Braga, porém, o fez com admirável tento. Foi buscar Vagre, rima natural, adequada ao assunto, séria e perfeita.

 

2.a estrofe:

 

Chegaste ... E de momento medindo a longa estrada...

Lançaste após a idéia a caça da, verdade :

Mas, se cedo caíste . . . Da morte na jornada

Bateste numa porta... abriu-se a Eternidade.

 

Aqui se pode dizer que, indo o poeta na jornada da morte, e batendo numa porta, era difícil que se lhe abrisse outra que não fosse a eternidade. Mas essa razão, excelente na prosa, não vale nada na poesia.

 

3.a estrofe:

 

E Deus em tua campa afunda um horizonte!

E é sobre campas tais que o seu esplendor vela!

Se além, como um cometa esfera-se uma fronte,

Do caos sai uma esponja e apaga a enorme estrela.

 

Esta última estrofe, melhor direi estes dois últimos versos, não os recusaria Victor Hugo. O próprio Milton, o próprio Dante, apesar de autores de grandes imagens, deixariam de invejar esta.

 

Vê-se daqui: a fronte esfera-se; é um cometa. Mas há lá no caos uma esponja, a terrível esponja do infinito; essa esponja sai, cai sobre a estrela, que a enorme, e apaga-se. Tudo isto é rápido, como a idéia que exprime.

 

Poetas juvenis, imitai versos destes. Deixai essa poesia desmaiada, essa poesia de soro de leite; sede fortes, altivos, grandes, desafiai as esponjas do caos. Não há esponjas do caos quando se escreve um nome nas Tábuas do Infinito, com a Penna enorme do Querer. Subir é a aspiração suprema da ave Mocidade; o Gênio é a Asa multicor da inspiração ; nada vale Nada, por que Tudo é tudo.

 

 

Dr. Semana.

 

 

 

 

CAPÍTULOS DOS CHAPÉUS

2 DE FEVEREIRO DE 1873.

 

Hipocrate dit . . . que nous nous couvrions tous deux.

Geronte

Hipocrate dit cela?

Sganarelle

Oui.

Geronte

Dans son chapitre. . . dês chapeaux.

Molière: Le médecin malgré lui.

Act. II, sc. II.

 

Até sábado passado, às 11 horas menos cinco minutos, o chapéu era uma criatura ilibada. Não constava na política um só crime do chapéu. O júri não via comparecer o chapéu à barra do seu tribunal. As rebeliões faziam-se muitas vezes com o concurso das bengalas, mas sem intervenção do chapéu. O chapéu era austero; pode-se dizer que era o Sócrates do vestuário.

 

O que ele fazia era obedecer a Hipócrates, segundo Sganarello; cobria o homem. Não tinha outro ofício. Cortejava os conhecidos; ia na mão, quando o mortal, seu dono, entrava na igreja ; pendia quietamente à porta das fábricas.

 

Sua neutralidade na política era tal que os homens viravam a casaca, mas não consta nunca que mudassem o chapéu. Ele servia a todos com a mesma solicitude. Era desdém ou servilismo? Não sei; mas a verdade é que era assim.

 

Mas chegou o dia de sábado 25, caiu a noite, tocou o sino das dez, os relógios marcaram 15, 30, 55 minutos, momento fatal, em que o chapéu se afundou no abismo de todas as iniqüidades.

 

Foi o caso.

 

Os espectadores do Fênix gostam da atriz Jesuína, no que lhes acho razão, porque nada perdeu do talento de outrora.

 

Houve uma ocasião em que o entusiasmo subiu de ponto: foi às 10 horas e 55 minutos. Trovejavam as palmas e os bravos, e então (ó assombro!) dez ou doze chapéus caíram aos pés da atriz.

 

Dizer o pasmo, a indignação, a cólera muda que se desenhou em todos os semblantes seria coisa digna da pena de um Tácito ou da lira de um Homero — à escolha. Uns olharam para o teto, outros para o chão, outros para os outros, e todos pareciam pedir uma reparação à moral ultrajada, um castigo a insurreição do chapéu.

 

Se não quando, quatro soldados correm até a porta da caixa, e os dez ou doze delinqüentes (aqui sou obrigado a referir-me a informações) são conduzidos ao xadrez, onde tiveram tempo de refletir nas desvantagens de ir meter o nariz — quero dizer, a aba —onde não eram chamados.

 

Ora, eu apelo para todas as almas bem nascidas, e intimo-lhes que me respondam se esta correção do chapéu não equivale à passagem do Granico ou, quando menos, à invenção do molliscorium.

 

Na antiguidade houve igual situação. Dracon (donde fizemos draconiano) apresentava ao povo de Atenas umas leis novas, e quando menos esperava recebeu na cara todos os chapéus do congresso popular. Um espírito esclarecido, como eu imagino que e o meu leitor, liga naturalmente o ato de Atenas com o do Rio de Janeiro. Não digo que haja du Dracon dans la Jesuine; mas o povo fluminense é muita vez consoante do ateniense, e pode amanhã acontecer a um legislador o que hoje acontece a uma simples atriz.

 

Portanto,

 

V’la ce qu'c'est !

C'est bien fait !

Fallait pas qu'y aille ! (bis).

 

Simples observações aos pios franciscanos.

 

O governo pediu aos franciscanos que recebessem no seu convento alguns enfermos; e os franciscanos perguntaram-lhe a que lhe soube o almoço, resposta tão concisa quão incisiva, e que eu quisera ver gravada em letras de bronze como exemplo a futuros governos e estímulo a vindouros franciscanos.

 

Não posso afiançar se a resposta foi literalmente aquela; mas, se não foram as palavras, foi o sentido, visto que o efeito da resposta não passou de deixar os franciscanos naquela doce e deliciosa paz d'alma e de corpo, em que vão, arrastando este pesado exílio do século.

 

Há que diga que esta recusa dos franciscanos não prova amor do próximo nem de Deus. É verdade; mas não há só esses dois amores debaixo do sol. Há outra coisa, quase tão sublime como Deus, e muito mais simpática que o próximo: é a pele. Os franciscanos amam a pele e fazem bem.

 

Meia dúzia de doentes no seu convento podiam dar-lhes o reino do céu, mas podiam também tirar-lhes o deste mundo, e na opinião dos franciscanos, se o reino do céu é bom, o morro de Santo Antonio não é mau, e sem de todo renunciar a ir gozar lá em cima, desejam ainda por algum tempo engordar cá embaixo.

 

A conclusão, portanto, é que os franciscanos trancaram a porta à febre amarela, e que a pele de suas paternidades continua a esticar, sem embargo da opinião que o governo, o povo e este seu criado possamos fazer deles.

 

Eu, às vezes, quando não tenho que fazer, entro a cogitar no que fazem os frades. É positivo que não gastam todo o tempo a rezar; também não me parece verossímil que passam todo o tempo a ler ou dormir. Um Mont'Alverne teria muito em que ocupar o tempo; mas os monges daquela casta não vêm aos cardumes; são raros.

 

Quando investigo este assunto, lembro-me se passam as horas do dia a fazer charadas ou a passear em cavalinhos de pau. Outras vezes imagino que jogam cabra-cega. Já uma vez acreditei que faziam calemburgos.

 

E não digo isto por censura; porque se cá fora a vida não chega a netos, não é crível que chegue a netos no claustro. Alguma coisa é preciso fazer para matar o tempo.

 

S. Paulo, que fabricava barracas de campanha, andava pregando o evangelho, e ao mesmo tempo trabalhando no seu ofício. Tinha um ofício. O ofício do frade é ser frade, coisa hoje equivalente a uma farta aposentadoria. Nem S. Paulo trabalhou para outra coisa, senão para avolumar o cachaço do frade, arredondar-lhe a barriga, florescer-lhe as rosas do rosto. Não trabalhou para que ele morresse de febre amarela.

 

Logo, fizeram muito bem os pios franciscanos.

 

A cozinheira Celestina

 

 Agora que cada médico apresenta o seu remédio contra a febre amarela, não é fora de propósito mencionar um que a cozinheira Celestina descobriu.

 

O qual foi exposto do seguinte modo:

 

— Para a febre amarela não há como refrescos e limonadas.

 

— Limonadas e refrescos? Disse o moleque.

 

— Sim, senhor; não há como isso. Em 1850 a filha do major B., onde eu estava, caiu com a febre amarela; deram-lhe logo uma limonada, que se foi repetindo de hora em hora. Não tomou outra coisa até o dia em que morreu.

 

A parede dos condutores

 

Mal sabe o leitor o que eu admiro em toda a história da parede que outro dia fizeram os condutores e cocheiros dos bonds.

 

O que mais me admirou foi (declaração da parte oficial) o estarem os chefes da revolta, às 6 horas da manhã. . .  bêbedos!

 

Admira realmente que a empresa tolere beberrões de tal ordem. Bêbedos às 6 horas da manhã! O que não será ao meio-dia?

 

Quem os vê no seu ofício durante o dia mal pensa que cada um deles esta já com duas ou três garrafas no bucho. Isso é por força algum segredo de Ayer. Ou então há criaturas que não se embebedam para todos, mas para alguns, ao contrário do sol, que, como sabemos, lucet omnibus.

 

Humildemente peso ao varonil Greenough haja por despedir esses “embriagados de Efraim”, não só para evitar outras paredes, mas, sobretudo para resguardar a pele dos contribuintes, seus criados.

 

Dr. Semana.